A polarização desmistificada

“Objetivamente, há pouco de dramaticamente anômalo para justificar o mal-estar que hoje se verifica quando o assunto é a polarização”


Por Marcos Paulo Quadros Cientista político e pró-reitor acadêmico do Centro Universitário Estácio Belo Horizonte

26/10/2022 às 07h00

O binarismo faz parte do imaginário humano. Desde sempre formulamos díades como dia e noite, sim e não, bem e mal, preto e branco. Trata-se de uma estrutura presente no cotidiano, de sorte que dela nos valemos espontaneamente a fim de produzir discernimentos.

Em política existe a mesma regra, sendo a tensão entre direita e esquerda a sua manifestação mais conhecida. Carl Schmitt afiançava que “todos os conceitos, representações e vocábulos políticos têm um sentido polêmico”, um “antagonismo concreto” que tem como “consequência última um agrupamento amigo-inimigo”.

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O termo “polarização” traduz essa tendência, caracterizando a política brasileira ao longo do tempo. Para além dos grupos/partidos “satélites” que orbitam os protagonistas, tivemos a oposição entre os partidos liberal e conservador durante o Império, entre as oligarquias de MG e SP na República Velha, entre varguistas e antivarguistas depois da Revolução de 1930, entre a UDN e o PTB no pós-guerra, entre a Arena e o MDB no regime militar, entre o PT e o PSDB na redemocratização.

O modelo se repete em inúmeras democracias. Nos EUA, republicanos e democratas são as únicas forças competitivas. Na Inglaterra, conservadores e trabalhistas detêm um protagonismo igualmente histórico. Na Alemanha, democratas-cristãos e social-democratas costumam se revezar na chancelaria. Na Argentina, temos peronistas e antiperonistas, no Uruguai, blancos e colorados…

Como se vê, a polarização, longe de ser exceção, é um padrão. A atual divisão do eleitorado é simplesmente a expressão recente e adaptada às circunstâncias de um fenômeno com o qual já deveríamos estar acostumados. Queiramos ou não, virão outras polarizações depois da que se concretiza em Bolsonaro versus Lula. Conservadores e progressistas continuarão por aí, ainda que os personagens se renovem.

É certo que a ideologização que permeia o bolsonarismo e o lulismo é especialmente aguçada. Há uma disposição centrífuga que reforça narrativas doutrinárias inflexíveis e investe na deslegitimação moral do adversário. Porém o dissenso social, as acusações, as mentiras, os slogans de mobilização e os excessos da propaganda não são novidades. As redes sociais conferiram aos indivíduos uma voz pública que nunca tiveram, mas ideias questionáveis já estavam presentes na sociedade antes disso, embora sem meios para se expandir tão rapidamente.

Objetivamente, há pouco de dramaticamente anômalo para justificar o mal-estar que hoje se verifica quando o assunto é a polarização. Olhando com distanciamento, veremos que novamente se trata de escolher entre uma corrente da direita (que no atual contexto defende a conservação dos costumes e a liberalização econômica) e uma de esquerda (que agora advoga o progressismo diversitário e o nacional-desenvolvimentismo). Uma vez que seus líderes tiveram a oportunidade de governar o país recentemente, talvez não seja realista sequer esperar grandes surpresas depois da eleição.

A polarização da vez passará. Ela, ao menos por si mesma, parece ser incapaz de destruir nossa imatura democracia.

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