‘Ela deu motivo’, diz o agressor


Por Relly Amaral Ribeiro, Mestre em Serviço Social e Política Social pela Universidade Estadual de Londrina e professora e tutora dos cursos de pós-graduação em Serviço Social do Centro Universitário Internacional Uninter

25/08/2022 às 07h00

Era uma tarde qualquer de 2002, minha colega de estágio não apareceu na Secretaria de Assistência Social como de costume. Eu, aluna do 2º ano de serviço social noturno, e ela, que aqui chamarei de Júlia, do matutino. No dia seguinte, ela aparece cabisbaixa e nervosa, óculos escuros tentando disfarçar as marcas da violência em seu rosto: olho roxo, boca cortada, testa ralada e partes da cabeça com falhas de cabelo. “Vamos comigo na delegacia”, disse ela, num misto de vergonha, medo e desilusão.

Seguimos para a delegacia e lá fomos atendidas do começo ao fim somente por homens. Algumas piadinhas e constrangimentos depois, fomos liberadas. Júlia disse: “Preciso voltar para casa, estou muito tempo fora, não posso dar motivo”.

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A revitimização da mulher que sofre violência, o constrangimento de ser inquirida por policiais do mesmo gênero que o seu agressor, a fragilidade no sigilo de seus dados pessoais, além de outras violências institucionais, eram uma constante no atendimento dessas mulheres.

Pensando na proteção integral da vítima, desde a tipificação dos diferentes atos de violência até a criação de uma delegacia especializada para o atendimento da mulher, é que a Lei nº 11.340/2006 – popular Maria da Penha – foi criada quatro anos depois do que ocorreu com Júlia. As mulheres, antes dessa lei, estavam muito mais expostas.

Porém, ainda hoje, não é fácil. Mulheres que denunciam a violência vivida precisam, na maioria das vezes, abandonar a sua casa, mudar os filhos de escola, avisar os parentes sobre uma possível retaliação do agressor, mudar de emprego, mudar de faculdade, de telefone e até de cidade – da mesma forma que ocorreu com a minha colega, já que ela “deu motivo” denunciando.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022) – estudo baseado em informações das secretarias estaduais de segurança pública de 2020/2021 -, cerca de três mulheres são vítimas de feminicídio por dia no Brasil. Quando inquiridos, os assassinos apontam que elas deram motivo: usaram roupas curtas, traíram, olharam para outro homem, quiseram se separar, chegaram tarde em casa, saíram com uma amiga, recusaram-se a ter relações sexuais ou, pasmem, queimaram o jantar.

Por isso, para as mulheres que são vítimas de violência – independentemente se física, moral, sexual, psicológica ou patrimonial -, viver é conviver com o medo, todos os dias, dentro e fora de casa, independentemente se elas permanecem em relacionamento com o agressor ou não. É estar constantemente em alerta, analisando se “deu motivo”.

Muito já se tem feito em termos de política de atendimento e legislação protetiva nos últimos 20 anos, porém a mudança de cultura e atitude em um país com um histórico colonialista, envolvendo mais de 500 anos de poder sobre os corpos, é temporalmente indeterminada.

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Por isso, se você está sofrendo algo que foi pontuado aqui, não se cale. Eu não me calei, a Júlia não se calou, minhas amigas e parentes não se calaram, e por isso estamos vivas. Fuja, procure ajuda na rede de atendimento à mulher de sua região: Delegacia da Mulher, CRAS, CREAS, Disque-Denúncia 180. Conte com a sua rede de apoio pessoal: converse sobre o que acontece com você para amigas(os), família, pessoas de sua confiança. Você não está só.

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