O deserto, local de poucos recursos, sem conforto, precário em alimentação e água, é uma figura recorrente nos profetas, nos grandes místicos. Na experiência da Bíblia, dos profetas e do próprio Jesus, o deserto representa um local de recolhimento, no qual as pessoas procuram se desapegar de coisas supérfluas, de buscar as coisas que são realmente essenciais.
É essa experiência que a Igreja nos propõe na Quaresma, tempo litúrgico que vivemos. Por motivos óbvios, o que se propõe aos cristãos são dias de intensificar a oração, o desapego de bens materiais, a redução do consumismo. Tempo de rever nossas relações com os outros, de nos perguntarmos se estamos realmente formando um povo com os nossos semelhantes. Se somos misericordiosos.
Na sociedade onde vivemos, todo dia, vemos nos jornais notícias referentes a trabalho escravo, mais de cem anos depois da abolição por lei da escravidão no Brasil, isso sem falar de outras formas de vida subumana em que milhões vivem. Sem falar dos que, por serem escravos da ganância, tudo querem acumular sem se importarem em saber que o que acumulam falta a muitos.
Logicamente, quem vive assim, senhores e escravos, não estão formando um povo irmão e companheiro. E esse não povo seguramente não tem a vida plena à experiência pascal. Aprender a ver essas coisas que ocorrem em torno de nós a toda hora é o primeiro momento. Os critérios para julgar essas coisas nos são ensinados pelas Escrituras e pelo ensino da Igreja. No mínimo, a afirmação de Jesus, que afirma ter vindo “para que todos tenham vida, e vida em plenitude”, nos leva, como cristãos, à indignação diante de cada situação em que a vida plena esteja sendo negada a alguém.
Após ver e julgar, somos chamados a agir. Cristo quer nossos braços, nossa inteligência e nossa vontade para realmente completar sua vinda ao mundo. O que podemos fazer, de maneira individual e coletiva, para corrigir o que pudermos corrigir?
Evidentemente, cada cristão deve fazer isso sempre, nos dias todos da vida. Mas a Quaresma é proporcionada pela Igreja para ser um tempo forte, de exercícios intensivos, por rememorar a caminhada de Jesus no nosso meio e atualizá-la. Agindo assim, assumimos cada vez mais a feição do Cristo, de quem todos somos membros. E veremos, como disse Dom Hélder Câmara, profeta brasileiro, que “o deserto é fértil”.