Graziele: mulher, negra, cidadã!


Por Ione Barbosa, delegada titular da 4ª Delegacia de Polícia Civil e Presidente do Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres

23/01/2022 às 07h00

Graziele Campos mora em Juiz de Fora, é estudante e, além de sua inescapável condição feminina, há outro aspecto essencial à identidade dessa jovem: ela é negra!

À sua condição de mulher e de negra, Graziele faz questão de acrescer – com plenas razões – dois atributos que lhe parecem irrenunciáveis: ela tem consciência de seus direitos e exige respeito à sua dignidade como ser humano.

PUBLICIDADE

Foi na qualidade de cidadã que essa mulher negra, corajosamente, publicou a situação que vivenciava em suas redes sociais, sendo amplamente divulgada pela imprensa a drástica e dramática experiência por que passou: foi vítima das ações covardes de um homem que, valendo-se de um perfil falso nas redes sociais, atentou contra sua condição de mulher e de negra.

A incomum brutalidade do criminoso fica desde logo patente no expediente por ele adotado: ele postou fotos dela (Graziele) ao lado de mulheres brancas e fez comparações entre elas.

O ódio racista desde logo se revela, fala aos nossos olhos e grita à nossa consciência pelo teor das palavras do agressor de Graziele: “Macaca, preta, suja, usa drogas e só serve para sexo”!

Ninguém, em sã consciência, deixará de ver nessas palavras o substrato de barbárie e de sordidez que impregna o discurso racista, cujo traço mais emblemático, a nosso sentir, radica na tentativa de desumanizar a pessoa de Graziele, seja reduzindo-a à condição de animal, seja subvertendo e negativando a cor da sua pele (“preta”), seja relacionando a isso tudo um qualificativo amesquinhador (“suja”). Por fim, a intenção de impingir um estigma à vítima fica expressa com a referência “usa drogas”!

Não bastassem esses “qualificativos”, o criminoso explicita ainda mais seu propósito racista ao dizer que Graziele “só serve para sexo”, expressão que aponta não somente para a desumanização da vítima, mas também para a sua instrumentalização, sua coisificação, sua redução à simples condição de objeto a serviço do prazer do homem, nesse ponto restando presente o que há de mais nefando na fala do agressor de Graziele: convergência entre racismo e machismo, sórdidos subprodutos da nossa herança escravagista-patriarcal!

Mas há outro aspecto, na fala do criminoso, que não pode passar despercebido e que escancara, a mais não poder, o que há de grotesco e de infame no racismo e expressa o seu quantum de intolerância e de violência. Eis o trecho: “Lugar de preto é no tronco e levando chicotada. Volta para a África”!

O Supremo Tribunal Federal decidiu, recentemente, que a prática do crime de injúria racial (previsto no Código Penal) constitui um tipo de prática de racismo e, por isso, não está sujeito a prescrição (o transcurso do tempo da prática do crime não impede o Estado de punir o autor desse crime) e não admite o pagamento de fiança (que é a possibilidade de alguém que praticou o racismo poder pagar determinada quantia em dinheiro e responder ao processo em liberdade).

Ao assim decidir, o Supremo Tribunal Federal estava julgando um caso ocorrido em 2013, em Brasília, quando uma senhora foi condenada por ter ofendido uma trabalhadora negra, frentista de posto de gasolina, chamando-a de “negrinha nojenta, ignorante e atrevida”!

O conteúdo continua após o anúncio

Seja como for, cumpre reagir, cumpre acreditar que o Direito tem um papel-chave nesse combate, cumpre dar concretude à esperança de Graziele, que, em meio ao tormento e ao sofrimento por ela enfrentados, expressou uma convicção: “Ainda acredito na Justiça”!
Nós também acreditamos.

Esse espaço é para a livre circulação de ideias e a Tribuna respeita a pluralidade de opiniões. Os artigos para essa seção serão recebidos por e-mail (leitores@tribunademinas.com.br) e devem ter, no máximo, 30 linhas (de 70 caracteres) com identificação do autor e telefone de contato. O envio da foto é facultativo e pode ser feito pelo mesmo endereço de e-mail.

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.