Covid-19: temores e culpa


Por Mário Sérgio Ribeiro Psiquiatra, doutor em Filosofia e professor aposentado da UFJF

21/05/2020 às 06h27

A intensa comoção psicossocial em torno da atual pandemia do Covid-19 é bastante diversa daquela experimentada quando da epidemia de H1N1. É fato que a H1N1 causou menos mortes que a Covid-19; mas, enquanto se vivenciava a pandemia, em 2009, não era possível estimar o número de mortes que ela causaria; da mesma forma que não o é agora, com a Covid-19.

Uma diferença entre os dois vírus – o H1N1 atingiu mais as crianças enquanto o coronavírus é mais agressivo entre os idosos – pode ter contribuído para a atual sensibilidade de tons apocalípticos. E é também provável que a mobilidade populacional tenha tido um papel proeminente na propagação do novo coronavírus: o turismo internacional duplicou nesta última década, e dentre os 10 top destinos turísticos, se encontram oito dos países mais precoce e fortemente atingidos pela atual pandemia.

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Capitais e cidades identificadas como porta de entrada de turistas revelam as mais altas taxas de infecção e de transmissibilidade do novo coronavírus. Algumas regiões europeias tiveram também eventos de massa associados ao rápido agravamento da situação. No Brasil, essa associação da epidemia ao turismo parece se repetir, e o carnaval pode ter sido um evento relevante na propagação do novo coronavírus: compare-se, por exemplo, a progressão da epidemia em São Paulo e Rio com Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre; ou Recife e Fortaleza com Maceió, Natal e Teresina.

A H1N1 atingiu predominantemente grupos etários mais baixos, não só mais resistentes do ponto de vista biológico como também mais protegidos pelas redes de suporte social. Já a Covid-19 agride de forma mais grave os idosos, ou seja, pessoas biologicamente mais frágeis e também com maior chance de estarem submetidas a restrições socioeconômicas.

É inegável que o terror que ora vivenciamos em torno da Covid-19 é imensamente superior ao experimentado em 2009, quando da epidemia de H1N1. E para tanto me parece ter sido fundamental a exposição do elevado número de mortes de idosos em “lares” e “asilos” da Itália e da Espanha, locais onde estes idosos deveriam estar protegidos também da epidemia. Afinal, ali eles já estariam em quase que constante “isolamento social”. Dados de outros países têm confirmado um grande número de óbitos por Covid-19 em instituições dessa natureza.

Assim – e diferentemente das crianças, vítimas preferenciais da H1N1 -, os adultos de faixas etárias mais altas parecem não somente ter contribuído para a propagação do novo coronavírus como também, nos seus extratos superiores, sofrem ainda com maior gravidade pelo crônico estado de privação psicossocial a que boa parte desta população vem sendo submetida.

Se o avanço no transporte aéreo e no turismo de massa contribuiu para a rapidez da propagação do coronavírus, as onipresentes redes sociais de 2020 amplificaram a voz desses adultos na expressão de possível mescla de temores e culpa subjacentes aos sentimentos e aos comportamentos mais ou menos irracionais que temos podido observar nestes últimos 50 dias. Enfim, forte presença das mídias sociais, sensação de ausência de sentido e de rumo, à espera de um mágico retorno a uma normalidade qualquer… ou de um mágico que faça a normalidade retornar a qualquer custo.

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