Outros ‘Genivaldos’ virão


Por José Ricardo Junqueira, jornalista e ex-secretário de Cultura e Turismo de Cataguases

19/06/2022 às 07h00

No meu tempo de estudante de jornalismo na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, havia uma matéria chamada “Jornalismo Comparado”, que se resumia em dar diferentes versões a uma determinada notícia divulgada na mídia. Na época, rede social não era nem sonhada. TV, rádio, revistas e jornais impressos que tinham a palavra final sobre os acontecimentos. A turma da faculdade era boa, e de um mesmo fato saíam muitas versões, algumas deveras interessantes. Eu, modéstia à parte, era craque no assunto. Vamos a um exemplo.

Assistimos recentemente, estarrecidos, à ação da Polícia Rodoviária Federal que resultou na morte de Genivaldo de Jesus Santos, em Sergipe, porque ele pilotava uma moto sem capacete. Não é necessário narrar em detalhes a covardia que foi exibida à exaustão na TV e nas redes sociais em busca de audiência. “Policiais agrediram Genivaldo de Jesus por 30 minutos, dizem moradores”, estampa o jornal “Folha de S. Paulo” como chamada de capa em 27 de maio.

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Nas imagens divulgadas percebe-se que havia muitas pessoas no local. Dá para ouvir comentários (“vão matar ele!”), e, num determinado trecho, vê-se um homem com os braços cruzados às costas enquanto assiste à execução. Se os policiais agrediram Genivaldo por 30 minutos, na cara de todo mundo, por que ninguém interferiu? Naquele momento, os policiais não estavam abdicando do seu papel de guardiões da lei e da ordem e assumindo o de assassinos cruéis? Ora, um crime estava sendo cometido por quem deveria combatê-lo! E todo mundo olhando. Se eu fosse escrever essa matéria numa aula na UGF, ela sairia com o título: “Deixaram matar Genivaldo”. Melhor ainda: “Deixamos matar Genivaldo”.

Não estou fazendo julgamento de valor nem acusando ninguém, pois sei que a inércia da população diante de todo tipo de agressão dos “de cima” tem raízes profundas. É uma cultura trabalhada e sedimentada há séculos na exclusão e no medo, principalmente dos que só conhecem a justiça quando ela lhes cai no lombo. Nesse arremedo de sociedade, nossas polícias trabalham historicamente como guarda pretoriana do que se convencionou chamar “elite”; e os pobres (e pretos) são os “criminosos” a serem abatidos. É o que vemos no dia a dia, ao vivo e a cores.

Apesar das ameaças de Jair Bolsonaro, cada vez mais descoladas das reais necessidades do país, creio que em outubro teremos eleições que serão respeitadas, doa a quem doer, mas continuo cético quanto às mudanças profundas que se fazem necessárias. Mirando no exemplo de Genivaldo, que poderia estar vivo se o povo tivesse voz e a usasse, penso que o Brasil só tomará outro rumo quando houver de fato uma vigorosa interferência e arbitragem da população. Como se dará isso não sei. Mas sei que voto na urna não basta. A democracia precisa ir além. Até lá, outros “Genivaldos” virão.

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