E depois?
“Estamos em um ponto de mutação, vivemos um momento que receberá destaque nos futuros livros de História. Momento em que muitos valores cristalizados por nossa sociedade estão sendo postos em xeque”
No dia em que escrevo, completo 29 dias de isolamento social. Nesse período saí de casa, no máximo, cinco vezes, incluindo uma ida à padaria situada a menos de 50 metros do meu portão. Desisti após perceber que a padaria tinha “gente demais”. Passei por algumas fases do modo de ver a atual crise: a fase da negação, a da paranoia, a da revolta, e agora a do medo, nem tanto o de morrer ou o de perder entes próximos, afinal morrer é o normal para quem vive. O medo agora é de encarar o que virá no pós-pandemia.
Estamos em um ponto de mutação, vivemos um momento que receberá destaque nos futuros livros de História. Momento em que muitos valores cristalizados por nossa sociedade estão sendo postos em xeque.
Temos a possibilidade de refletir sobre a mudança do que consideramos como trabalho ou o papel do Estado nas políticas sociais. Ou o absurdo da lógica do socorro estatal ao mercado financeiro em detrimento do social. Percebemos também a diversidade das estruturas familiares e da importância do respeito a essa diversidade para a sociedade, as consequências da desigualdade em que a sociedade é estruturada e que isso beneficia exclusivamente uma minoria privilegiada. Este momento nos faz perceber também os malefícios provocados ao meio ambiente por um crescimento econômico infinito e desenfreado em um planeta com recursos finitos. Por fim, podemos também vislumbrar o redespertar de uma consciência de classe.
No entanto, não podemos ingenuamente esperar que tais reflexões estejam no pensamento de líderes mundiais e de outros personagens que tenham poder de decisão sobre as nossas vidas. E que se materializem em ações equitárias e positivas.
Sugiro que aproveitemos esses questionamentos. Podemos, a partir dessas reflexões, nos empenhar coletivamente na construção de uma nova sociedade. Ou de uma sociedade diferente, ao menos. Podemos, a partir de agora, lutar para que o coletor de lixo seja igualmente valorizado como é um médico. Que passemos a considerar que pequenas empresas precisam e merecem mais operações de socorro financeiro que os bancos. Temos nas mãos a possibilidade de restabelecer a relação entre homem e natureza. Podemos ver, diante desta pandemia, que ter políticas públicas, como renda básica, sistema de saúde único e público e saneamento básico universal, é, talvez, o mais eficaz escudo protetor da economia.
A economia não pode ser dissociada da saúde: são grandezas distintas e complementares. O mantra “a economia não pode parar!” na verdade se refere ao fato de que os trabalhadores não podem parar. Ou seja, quem é importante para o mercado existir?
Neste momento de confinamento, é também urgente que repensemos profundamente as nossas relações familiares e afetivas e o quanto do nosso tempo gastamos no progresso profissional em detrimento do exercício do amor por nossos próximos.
Mas podemos, também, simplesmente fechar os olhos, não fazer nada e seguir com a sociedade da forma como era antes de a pandemia nos surpreender. Já estamos pagando um alto preço por termos os olhos fechados. Podemos continuar adorando heróis de papel moeda, aceitando as desigualdades como normalidade, destruindo o único planeta disponível para nós e gastando o nosso sagrado e escasso tempo de vida com futilidades e juntando moedas.
É bom que a gente se decida logo por um dos caminhos. Afinal, tudo pode acabar amanhã.