O tirano de mil faces


Por Rafael Mendonça Jornalista e empreendedor

14/12/2021 às 07h00

Joseph Campbell revolucionou a escrita de histórias com a publicação do clássico “O herói de mil faces”. Suas pesquisas sobre mitologia deram origem à hoje célebre jornada do herói, que orienta a criação de roteiros e nos aponta as semelhanças entre obras aclamadas, como Star Wars, Senhor dos Anéis e Harry Potter.

Se fosse brasileiro, Campbell teria ido além. As similaridades entre os personagens da mitologia política tupiniquim seriam um prato cheio para expandir seus estudos, com base em uma das maiores mazelas do país: o populismo.

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Passando por suas origens varguistas, a construção de mitos políticos apresenta atualmente um cenário interessante com suas duas principais figuras, Bolsonaro e Lula, convergindo em silêncio e mostrando como são tão iguais.

Iguais no apoio a ditadores e populistas autoritários que marcham do seu lado. Fidel, 1964, Maduro, Pinochet, Chávez, Stroessner, Evo, Orbán, Ortega. Qual é o meu malvado favorito atual?

Iguais na polarização, no nós-contra-eles, na construção de projetos de poder hegemônicos em seus campos políticos e nos ataques à imprensa, que denuncia seus crimes. A extrema-imprensa comunista de Bolsonaro é a mesma que compôs o Partido da Imprensa Golpista (PIG), uma das cortinas de fumaça criadas por Lula.

Iguais nas tentativas de subverter a ordem democrática e pisar no Estado de Direito por meio da submissão do Legislativo ao Executivo. Mensalão, Tratolão, Petrolão, orçamento secreto. Qual é o escândalo da vez?

Iguais no trabalho em conjunto no Congresso para obstruir a justiça e enterrar o combate à corrupção. Limitação de poderes da PF, engavetadores na PGR, juiz de garantias, Bessias, obstrução da Lava Toga, fim da Lava Jato, combate à prisão após condenação em segunda instância, controle do MPF, indicações suspeitas ao STF.

Iguais no financiamento de blogueiros amigos e militantes com dinheiro público. Vai uma bandeira do Brasil e R$ 100 ou um pão com mortadela e R$ 50, senhor?

Iguais nas declarações autoritárias e populistas diante de apoiadores e jornalistas. Bolsonaro não é coveiro e diz “e daí?” para a Covid, enquanto Lula celebra a pandemia como forma de criar um Estado controlador da vida pública. Bolsonaro ameaça jogar fora das quatro linhas da Constituição, enquanto Lula flerta com a regulação – leia-se “censura” – da imprensa e das redes sociais.

Na era das bolhas e da falta de diálogo, Bolsonaro conseguiu o inimaginável: sua covardia contra o Brasil chegou a unir liberais, pedetistas, libertários, alas do PSOL e do PCdoB e conservadores – os de verdade, defensores da democracia, da conservação das instituições e dos avanços por meio delas – em manifestações pró-impeachment.

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E, para a surpresa de absolutamente ninguém, quem se posiciona contrariamente? Lula, o arqui-melhor-inimigo do atual presidente. Porque, sem Bolsonaro, a rejeição aos incontáveis escândalos de corrupção da Era Lula reduz sua competitividade em um eventual segundo turno. Porque, sem Lula, a narrativa esquizofrênica bolsonarista não para em pé, e a família Bolsonaro fica cada vez mais próxima da prisão.

Enquanto atores políticos que se criticaram continuamente nos últimos anos tentam chegar a acordos pelo bem da democracia, Lula e Bolsonaro seguem ali, abraçados, enquanto o Brasil sangra. Como numa versão às avessas da relação herói-vilão criada por J. K. Rowling, um só pode existir em 2022 enquanto o outro tiver forças. Mas nesse caso não há um herói. Apenas dois vilões. Ou um só. Tanto faz. São duas formas do tirano de mil faces.

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