A coisa mais preciosa


Por Cristiano Ferrara de Resende, doutor em Ecologia e professor substituto da Universidade Federal de Juiz de Fora

13/05/2020 às 06h58

Há pouco mais de 23 anos, morria o físico e divulgador científico Carl Sagan. Defensor incansável do método científico e do ceticismo, sua ausência é cada vez mais perceptível nos dias de hoje. Seu livro “O mundo assombrado pelos demônios” é um guia atemporal de como entender e encarar a realidade que nos cerca, uma obra que todos nós deveríamos ler e reler quantas vezes fosse possível.

A nossa sociedade carece de conhecimento científico, e esse fato é mais ou menos comovente dependendo do país que consideramos. No Brasil, especificamente, o estado crítico da falta de entendimento do processo científico se expressa de forma ainda mais preocupante nos dirigentes políticos e nos formadores de opinião, pessoas que têm suas vozes reverberadas e potencializadas pelas redes sociais. O compartilhamento de fake news, de dados incompletos e de interpretações equivocadas já seria preocupante em tempos “normais”, mas pode ser causa de mortes de centenas ou milhares de pessoas em tempos de Covid-19 e sua pandemia.

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O isolamento social é a única medida atual que pode ter alguma eficácia para frear o crescimento descontrolado no número de contaminados e o colapso do sistema de saúde. Modelos matemáticos multifatoriais são criados e diariamente refeitos, à medida que os números de vítimas são atualizados e que se conhecem as características do vírus e de sua disseminação. Mas aqueles que duvidam das autoridades científicas ou que não possuem conhecimento técnico para contra-argumentar não precisam simplesmente acreditar nos cientistas. Na falta dessa possibilidade, basta analisar o que já ocorreu nos países em que o vírus chegou mais cedo. Há aqueles cujos governantes deram ouvidos aos cientistas, impondo medidas de restrição mais rígidas e sendo, portanto, menos afetados, e aqueles que decidiram ignorar as opiniões dos especialistas e hoje amargam um número cada vez maior de mortes.

Num cenário ideal, no qual a alfabetização científica fosse levada a sério, não haveria espaço para teorias conspiratórias ou para discursos supostamente elevados de antiestablishment. É óbvio que na ciência não existe somente consenso. Aliás, o debate de ideias é fundamental para o progresso científico. Porém esse debate tem que ocorrer dentro da ciência, nos moldes do método científico: observação de fenômenos, formação de hipóteses explicativas, testes das hipóteses e formulação de conclusões após observação dos resultados.

Em uma sociedade cuja educação fosse emancipadora, haveria críticas a determinados resultados científicos, mas não ao processo científico em si. É muito preocupante quando, tomados por paixões políticas ou interesses econômicos, os nossos dirigentes resolvem desconsiderar as orientações científicas. Os pesquisadores e os cientistas, tão maltratados no nosso país, são os únicos responsáveis por toda a tecnologia que nos cerca e que facilita nossas vidas, dos fármacos que nos desentopem as narinas aos satélites que buscam a centelha de formação do nosso universo e nossas origens. Como um cientista, gostaria de viver num país cujos governantes investissem pesadamente na formação de professores e pesquisadores, cujo povo fosse educado cientificamente somente a opinar e aceitar opiniões embasadas em fatos e evidências.

Cometendo o “crime” de pegar emprestado o título do capítulo 1 do livro supracitado para este próprio ensaio, termino, como Sagan começou o referido capítulo, com uma citação de Albert Einstein: “Toda a nossa ciência, comparada com a realidade, é primitiva e infantil – e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos”.

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