Deveres dos neutros
Em 1916, durante a Primeira Guerra, Rui Barbosa proferiu conferência na Faculdade de Direito de Buenos Aires, em que destacou os deveres dos neutros em face do conflito mundial. Advertiu, na ocasião, que “neutralidade não quer dizer impassibilidade: quer dizer imparcialidade”. E alertou para os limites aos quais a não ingerência de terceiros nas lutas alheias deve obedecer, que se adstringem à esfera militar, aos combates travados entre as nações em guerra, não podendo resultar em atitude de indiferença às violações do Direito Internacional ou à perpetração de crimes contra a humanidade. Isso porque “os tribunais, a opinião pública, a consciência não são neutros entre a lei e o crime”, seja no âmbito interno de um país, seja no plano internacional.
O mundo assiste, presentemente, à invasão da Ucrânia pela Rússia numa guerra de conquista, que não tem a justificá-la nenhum ato de ameaça do país invadido ao invasor, qualquer desrespeito por parte daquele aos interesses desse. Trata-se de uma guerra de ocupação, e não de retaliação, na qual o mais forte se impõe ao vizinho, em nome de supostas razões de ordem histórica ou étnica, como se o fizesse para fazer valer um direito. E, avançando sobre o seu território, dele afugenta toda uma população que se sente ameaçada e se vê na contingência de abandonar o que possui para salvar a própria vida, buscando abrigo em outros países.
Compreende-se que, nas circunstâncias, a postura comum das outras nações seja a de neutralidade ou de abstenção de apoio militar ao país agredido, até para evitar o agravamento do conflito. Buscam-se, como alternativas, sanções econômicas capazes de induzir o agressor a compreender que, prosseguindo na luta, sujeitar-se-á a prejuízos de tal monta que a guerra deflagrada acabará voltando-se contra si mesmo. E apela-se para razões de ordem moral, a que as nações civilizadas não podem ficar alheias, colocando o transgressor na posição de um pária internacional em face do seu não acatamento. Foi o que fez a Assembleia das Nações Unidas, na expressiva resolução que aprovou sobre o conflito, pelo voto de 141 países nela representados. As sanções do Direito Internacional são, em regra, sanções de natureza moral, que se sustentam pelo poder de persuasão que emana das decisões pertinentes. Ao aprová-las, como fez a ONU, a comunidade internacional indica, ademais, os limites da neutralidade que os seus integrantes estão dispostos a observar. Ou seja, deixa claro que aqueles são neutros, porém, não se mostram impassíveis diante dos abusos cometidos.
Nesse contexto, não há como admitir a tergiversação dos que, ao mesmo tempo que subscrevem a decisão da ONU, emitem declarações de simpatia ou solidariedade ao agressor, mesmo sob o pretexto de preservar boas relações que com ele mantenha ou de não prejudicar interesses econômicos que derivam da dependência de nossa economia em relação a insumos agrícolas dele importados. Ao revés, o que se espera, em respeito às tradições da nossa diplomacia, é que o nosso governo seja capaz de expressar claramente posição contrária aos desatinos do agressor. E que não lhe falte, nessa hora, nem mesmo o apoio da oposição mais extremada, que, aliás, se movida se acha por propósitos elevados, não deve ter, em face da crise, comportamento dúbio, deixando-se trair pela prevenção que nutre contra os EUA, principal antagonista da Rússia, no cenário mundial. O momento não comporta ressalvas fundadas em ressentimentos ideológicos ou contingências da política interna. É a consciência da nossa civilização, imbuída de razões humanitárias, que clama por um posicionamento incisivo e sem reservas contra a guerra insana e a ocupação brutal que ora testemunhamos.
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