Os conflitos diários da pandemia

“A população se divide entre as informações e as resoluções, e, até nas rodas de conversas mais familiares, ainda há discordância entre as medidas de isolamento ou a manutenção do convívio social”


Por Talita Leite Ladeira, fisioterapeuta, professora da Estácio JF e doutora em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva

11/07/2021 às 07h00

Os números da pandemia de Covid-19 são alarmantes. Esse “novo normal” mudou a rotina da sociedade como um todo, e, em tempos difíceis, os conflitos se afloraram, desde o ponto de vista governamental ao técnico-científico, até adentrarem os nossos lares. Se de um lado houve a instauração de uma crise entre priorização da economia versus medidas restritivas de saúde pública, em outro ponto ainda há o conflito entre direitos individuais e coletivos. A população se divide entre as informações e as resoluções, e, até nas rodas de conversas mais familiares, ainda há discordância entre as medidas de isolamento ou a manutenção do convívio social.

Ao mesmo tempo em que a pandemia nos prova a importância do nosso SUS, ela também nos machuca ao expor as fragilidades: falta de recursos humanos; falta de leitos; falta de ventiladores; falta de medicações e insumos; falta de testagens e vacinas suficientes. Para além da discussão de cunho político, temos serviços de saúde doentes; profissionais exaustos com a sobrecarga física e emocional que a pandemia impõe ao trabalho.

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Como profissional de saúde, me sensibiliza pensar nos que estão na linha de frente, aqueles que saem da “segurança” de seus lares e se colocam à disposição da coletividade. Que doam seu descanso, sua saúde física e mental; que vivenciam perdas diárias. São perdas de pacientes, de colegas de trabalho, de familiares, de amigos e até da própria vida em prol do exercício de cuidar. Muitos vivem o conflito diário de cuidar em condições adversas, tendo que driblar a falta de recursos para minimizar a dor e o sofrimento do outro.

E é nesse cenário bastante adverso que surgem outros questionamentos: qual paciente deve ser intubado? Qual terá melhores chances de se beneficiar do ventilador mecânico? Qual é o critério estabelecido para a oferta desse ventilador diante de maior demanda por sua utilização? Como informar à família sobre o mau prognóstico do paciente? Como se relacionar com o paciente crítico e como possibilitar melhores condições de lidar com a situação imposta? São escolhas demasiadamente complexas, para as quais não existem protocolos determinados por livros e diretrizes. Esse fardo também recai sobre os profissionais de saúde.

E ali, no leito, destinatário do cuidado em saúde, se encontra o paciente, com todo seu contexto de vida, com a debilidade biológica instalada e a fragilidade emocional de sequer ter contato com seus familiares. Muitos sem condições de uma despedida digna. Do lado de fora está a família, ávida por notícias otimistas.

A verdade é que todos estamos esgotados! Há um luto coletivo! Queremos retomar nossos projetos, queremos abraçar nossos amores, queremos falar o que ainda não falamos, queremos que o tempo nos permita mais abraços! A única certeza é que não seremos mais os mesmos! Que possamos ter resiliência, mas que não nos falte coragem! Por nós, pelos nossos e por todos aqueles que não terão essa oportunidade de escolha.

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