Pandemia x discursos de ódio
Parece cena de filme: num piscar de olhos, a Terra parou, e tudo mudou! Vidas que se foram precocemente; vidas que vieram; vidas revividas; vidas repensadas; vidas prometidas; vidas… Mas, neste Brasil brasileiro pandêmico, a “aquarela” que se samba é uma roupagem moderna de Hobsbawm, na “Era dos Extremos”, numa adaptação onde disputam espaço amor e ódio.
Neste cenário apocalíptico, se por um lado o isolamento social tem revelado pessoas que não medem esforços em prol do próximo, exercendo o amor em sua plenitude; por outro, tem floculado conteúdos, gestos e ações repugnantes, principalmente, sob o véu de discursos fundamentalistas ou “embasados” em nada, a empreenderem e a propagarem mensagens, sobretudo, nas redes sociais (mas não unicamente) de conteúdo racista, homofóbico, transfóbico, gordofóbico, misógino ou intolerante às diferenças, incitando o ódio contra o nosso semelhante. E muitas pessoas acabam repetindo esses discursos de ódio de forma quase natural, um tanto quanto folieàdeux (pronuncia-se foli-à-dê, termo francês que significa “loucura a dois”, para ilustrar transtorno psicótico compartilhado), em que pessoas (geralmente próximas) “deliram” ao mesmo tempo!
Exemplificando, pois, aos olhos de uma parcela insana da população, a lei penal é simplesmente ignorada. A ciência é rechaçada. Meninas e mulheres vítimas de estupros e outras violências são revitimizadas ou “tornadas” algozes. Trabalhadores da infantaria pandêmica (profissionais da saúde, da segurança pública, das comunicações de massa, dos serviços gerais, dos serviços delivery e tantos outros campos que não cabem nesta lauda) são massacrados de alguma forma em sua dignidade ou em suas condições de trabalho. Pessoas negras, indígenas, LGBTQIAP+, refugiadas, plus size, pessoas com deficiência, em situação de rua, minorias linguísticas, religiosas e muitas outras que não se enquadram em algum ridículo “padrão” são expostas a todos os tipos de injúrias e aviltamentos “possíveis”! Até parece que a guerra não é contra o coronavírus…
Enfim, mais do que da saúde do corpo, é preciso manter a saúde da mente para não cairmos nem compactuarmos com essas ciladas. E, independentemente de credo, ou do que for, exercitarmos a mais que bem-vinda fraternidade! Só para constar, esses discursos de ódio, que, em verdade, além de caminharem na contramão dos Direitos Humanos, constituem crimes de ódio previstos na Constituição Federal, no Código Penal Brasileiro e em outros aparatos, como a Lei Federal n° 7.716/ 89, que trata dos crimes de incitação ao preconceito sob diversas formas. Ademais, muitas vezes, conteúdos abusivos transpõem o campo das ideias e concretizam várias matizes de violência, não só contra a pessoa, mas também contra os animais, o meio ambiente e o patrimônio público ou particular. Tudo contribuindo para nos garantir o tétrico título internacional de pior país para lidar com a pandemia. E todos temos o veredicto: culpados!
Já diziam nossos avós que: “Não se pode acender uma vela para Deus e outra para o diabo”. Portanto não há como nos fundamentarmos no errado para encontrar o certo. É um algoritmo que não bate! Nossa passagem por este mundo é para evoluir, somando e multiplicando uns aos outros e não para subtrair, nem dividir o homem. A evolução social universal depende disso. A sobrevivência, também. E, para acompanharmos a evolução rumo à paz e à justiça social, é preciso que tenhamos mentes abertas e tolerantes; mentes à frente de seu próprio tempo. Nossa guerra declarada é contra um vírus, não contra o nosso próximo!
Introduzidos a esta reflexão com o historiador britânico Eric Hobsbawm, na “Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991”, nada mais pertinente do que concluir com o mesmo autor, desta vez em outra obra: “A Era do Capital: 1848-1875”, em que ele alude ao sempre atual discurso do estrategista de guerra e ex-governante francês, Napoleão III: “Se caminhardes à frente das ideias do vosso século, essas ideias te acompanharão e te sustentarão. Se caminhardes atrás delas, elas vos arrastarão. Se caminhardes contra elas, elas vos derrubarão”.