A luta das mulheres é uma luta democrática

Em uma sociedade forjada pela lógica machista e patriarcal, o desafio de criar estruturas capazes de romper com o ciclo da violência (…) é grande


Por Letícia Paiva Delgado, secretária de Segurança Urbana e Cidadania de Juiz de Fora, doutora em Direito e Sociologia (UFF), mestra em Ciências Sociais (UFJF), professora, e advogada

08/03/2023 às 07h00

O ano de 2023 traz consigo a expectativa de um trabalho comprometido do Governo Lula para construir e implementar agendas de políticas públicas capazes de garantir a plenitude dos direitos sociais e a promoção da cidadania e do bem-estar social. Essa expectativa aumenta frente ao recente desmonte que o Governo Bolsonaro operou em relação a várias políticas sociais. O orçamento destinado à política de mulheres no Brasil, por exemplo, sofreu um corte de mais de 90% nos últimos quatro anos, cujas consequências já podem ser sentidas.

A pesquisa “Visível e Invísivel: a vitimização de Mulheres no Brasil”, divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que apresentou dados sobre as violências sofridas por mulheres com mais de 16 anos, evidenciou que todas as formas de violência contra a mulher, com destaque para as praticadas com armas brancas e de fogo, apresentaram crescimento acentuado no último ano. Mais de 18,6 milhões de brasileiras sofreram violência física, psicológica ou sexual em 2022. São 50.962 casos por dia, em média. Para além do corte orçamentário, a eleição pela extrema direita da igualdade de gênero como uma pauta a ser combatida contribuiu para o fortalecimento dos mecanismos de invisibilização política, institucional e social desse tipo de violência.

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O mês de março é simbólico na luta das mulheres. Nesse ano, ao simbolismo, soma-se à esperança de que a mudança de rumo na agenda do Governo federal seja capaz de realinhar a política de prevenção e enfrentamento à violência contra a mulher com os pilares democráticos. A Constituição Federal de 1988, marco da transição democrática e da institucionalização dos direitos civis e políticos das mulheres no Brasil, não só reconheceu a igualdade de gênero com uma cláusula pétrea (artigo 5º, I) como trouxe o embrião da rede de proteção à violência contra a mulher no Brasil (artigo 226, §8º). Foi também o resultado da soma do processo de reabertura democrática e da pressão realizada pelo movimento feminista que impulsionou a criação da primeira Delegacia Especializada para o Atendimento de Mulheres (Dem) em 1985, na cidade de São Paulo.

A lei 11.340 de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, é o resultado do somatório de várias forças democráticas, com destaque para os movimentos internacionais de fortalecimento da tutela dos direitos humanos, em especial de proteção às mulheres, sendo considerada pela Organização das Nações Unidas como a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica, atrás apenas da Espanha e do Chile. Um ano antes de sua promulgação pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Governo federal criou o disque 180, Central de Atendimento à Mulher, com a finalidade orientar as mulheres em situação de violência. Em 2015, a lei 13.104, considerou qualificado e hediondo o crime contra a vida, quando a situação envolver violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima. Surge, assim, o crime de feminicídio.

Em uma sociedade forjada pela lógica machista e patriarcal, o desafio de criar estruturas capazes de romper com o ciclo da violência (que situa o Brasil na quinta colocação dentre aqueles com o maior número de feminicídio no mundo) é grande. No entanto, como dita a história, a agenda de defesa da mulher foi construída em períodos de avanços e estabilidades democráticas, pois, na essência, a luta das mulheres (e pelas mulheres) é uma luta democrática.

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