Civilização de democracia


Por Paulo Roberto de Gouvêa Medina, professor emérito da UFJF

01/01/2023 às 07h00- Atualizada 01/01/2023 às 13h18

No episódio da corrida de cavalos, descrito por Eça de Queirós em Os Maias, diante do tumulto que se forma em torno da tribuna real, ao término de um dos páreos, o Marquês de Souselas, numa roda de amigos, faz um comentário ácido sobre o acontecimento, bem ao tom do romance, que é, em grande parte, uma sátira da sociedade lisboeta da época. E conclui com esta observação: “Corridas, como muitas outras coisas civilizadas lá de fora, necessitam primeiro de gente educada”. Lembrei-me dessa passagem ao ver as cenas de vandalismo ocorridas em Brasília, no dia da diplomação do presidente e do vice recém-eleitos. Os fanáticos que incendiaram veículos e depredaram janelas, a pretexto da prisão de um dos comparsas (índio, de maus antecedentes), levavam, daquela forma, ao paroxismo a reação despropositada dos que, inconformados com o resultado da eleição, estavam, há dias, acampados diante de quartéis militares ou obstruindo estradas com os seus caminhões enfileirados. Era uma atitude manifestamente antidemocrática, mas, antes de tudo, uma maneira deseducada de comportar-se, um arroubo de truculência de quem não se mostra preparado para viver numa democracia.

No passado, houve manifestações contrárias ao resultado de pleitos, mas limitadas à retórica dos políticos ou a recursos interpostos no plano judicial. Getúlio e Juscelino tiveram suas eleições contestadas ao argumento de que não haviam obtido maioria absoluta dos votos, o que, num regime que pressupõe a vontade majoritária dos eleitores em favor do vitorioso, seria de considerar-se implícito nas disposições constitucionais pertinentes. Mas, ainda que relevante a tese, não havia, na Constituição à época em vigor, previsão de um procedimento para a apuração da maioria absoluta, em dois turnos de votação, como hoje ocorre. E, por isso, bastaria a maioria simples de votos para a proclamação do eleito.

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Agora, a tese que se alega é a de que as urnas eletrônicas são vulneráveis e, assim, é de imaginar que a escassa diferença de votos entre os dois candidatos que disputaram o segundo turno haja resultado de fraude no processo de votação. Um argumento puramente imaginário, que faz lembrar a fábula de Machado de Assis sobre o sistema de votação da república das aranhas (A Sereníssima República), no qual se utilizaria um saco de malha como urna. A forma desse saco, entretanto, tornou-se objeto de infindáveis discussões. A lei que disciplinava o processo eleitoral passou a ser interpretada com “eterna malícia”, e o saco dos votos foi sendo refeito pelas costureiras que faziam, assim, o papel de Penélope, à espera não de Ulisses, mas do mito da Sapiência, que nunca foi capaz de iluminar as extravagantes eleitoras, em busca de uma forma ideal para o tal saco. Do mesmo modo parecem agir, entre nós, os inconformados com as indicações das urnas eletrônicas, a despeito de jamais comprovada qualquer fraude no sistema. Como as aranhas do conto, eles estarão sempre em busca de pretextos para tumultuar o processo eleitoral. É certo que, por detrás de todo esse inconformismo, está o problema de elegibilidade do candidato vitorioso, de repente (não mais que de repente, como no soneto de Vinicius de Moraes) habilitado a concorrer, na medida em que o Supremo Tribunal Federal anulou os processos criminais a que respondia. Mas essa é uma questão há muito superada, uma vez que, inscrevendo-se, regularmente, como candidato, ele disputou a eleição e venceu. Ora, na democracia ganha quem tem mais votos, cumprindo aos vencidos aceitar o resultado. É como procedem os povos civilizados, dignos de viver num Estado Democrático de Direito. A democracia também pressupõe gente educada para o seu regular funcionamento.

 

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