Homenagens a escravocratas e pessoas ligadas à ditadura podem ser proibidas em JF

Proposta abrange também vedação de nomes de ruas e monumentos em referência a condenados por violação dos direitos humanos


Por Renato Salles

20/03/2022 às 07h00

Para justificar a proposta, a vereadora cita o caso da Avenida Costa e Silva, no Bairro São Pedro, na Cidade Alta, que, segundo a parlamentar, “é alvo de intensas críticas e debates na cidade” (Foto: Fernando Priamo)

A Câmara Municipal de Juiz de Fora analisa proposta que pretende vedar e até mesmo rever homenagens municipais, como nomes de ruas e monumentos, a pessoas cuja trajetória esteja relacionada à escravidão e a períodos de exceção e anormalidade constitucional da história brasileira. De autoria da vereadora Laiz Perrut (PT), o projeto de lei quer proibir, no âmbito do Poder Público municipal, homenagens “a escravocratas e a apoiadores da violação de direitos humanos e da suspensão dos princípios e valores do Estado Democrático durante a ditadura militar instaurada no Brasil entre 1964 e 1985”. O texto foi apresentado em fevereiro e ainda inicia tramitação no Poder Legislativo.

A proposta tem por objetivo vedar a instalação de estátuas, bustos e monumentos em alusão a estas figuras; e também que sejam atribuídos a elas nomes de prédios, rodovias, ruas, praças, logradouros, repartições públicas e bens de qualquer natureza pertencentes ou sob gestão do Município. A vedação também se estende a pessoas cujo nome conste no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Lei federal nº 12.528/2011, “como responsável por violações de direitos humanos, assim como agente público, ocupante de cargo de direção, chefia, assessoramento ou assemelhados e pessoas que notoriamente tenham praticado ou pactuado, direta ou indiretamente, com violações de direitos humanos, durante o período da ditadura militar”.

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O texto define que, para efeito da proibição, “consideram-se escravocratas os agentes sociais individuais e coletivos que, por suas ideias manifestas e ações no âmbito público ou privado, tenham defendido ou promovido a manutenção, organização e funcionamento do processo de escravização de africanos, indígenas e seus descendentes, atual ou historicamente”. A proibição se estende também a pessoas que tenham sido condenadas, com sentença transitada em julgado, por crimes contra a humanidade, violação aos direitos humanos, violência doméstica e familiar contra a mulher, exploração do trabalho escravo ou crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência.

Proposta autoriza renomeação de espaços públicos e retirada de monumento

A vereadora ainda sugere que espaços e bens públicos cujos nomes realizem homenagens a escravocratas; a eventos históricos ligados ao exercício da prática escravista; a condenados por crimes contra a humanidade, violação aos direitos humanos, exploração do trabalho escravo e crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, poderão ser renomeados. Neste caso, a possibilidade não se aplica “a esculturas ou obras de arte em que ocorram razões de ordem artística, arquitetônica, artística ou religiosa em prol de sua manutenção”.

Da mesma forma, o projeto de lei determina que os monumentos públicos, estátuas e bustos que já prestam homenagem a pessoas e fatos elencados como proibidos pela proposição sejam retirados de vias públicas e integrados ao acervo de preservação do patrimônio histórico do Município, alocadas em museus e instituições de ensino sediadas no município. “(…) Caso expostos ao público, deverão ser acompanhados de informações que explicitem as ideias e ações da pessoa homenageada em apoio ao escravismo e à ditadura militar, vedada a exaltação de tais posicionamentos e práticas”, resume o dispositivo.

Exceções

O projeto prevê que a não observância das regras, caso elas sejam aprovadas pela Câmara e transformadas em lei, poderá configurar ato de improbidade administrativa. Por outro lado, o dispositivo traz exceções para as situações de denominações, esculturas ou obras de arte que não enaltecem a memória do homenageado, “notadamente aquelas com função histórica e acadêmica”.

‘Função educativa’

A vereadora ressalta a existência de debates prévios em Juiz de Fora sobre a necessidade de adequação das homenagens públicas relacionadas aos casos previstos na lei.

“Os monumentos são patrimônios públicos que desempenham uma função também educativa, vez que instituem uma memória coletiva que estabelece quais figuras do passado devem ser lembradas e enaltecidas. Indiretamente, esses monumentos também informam sobre quais sujeitos e grupos serão esquecidos. Há verdadeira disputa por um lugar de memória em que sempre se repercutiram as lógicas opressoras e elitistas”, diz Laiz Perrut, na justificativa do projeto de lei. Para a vereador, a proposição “visa corrigir tal deturpação, fazendo justiça aos oprimidos e removendo da exaltação pública local aqueles que violaram os direitos humanos pelas mais diversas e torpes ações humanas”.

Discussões similares ocorrem em outras cidades brasileiras

Ainda para justificar a proposta, a vereadora cita o caso da Avenida Costa e Silva, que fica no Bairro São Pedro, na Cidade Alta, que, segundo a parlamentar, “é alvo de intensas críticas e debates na cidade”. Laiz ainda faz referência a projetos semelhantes discutidos em outras cidades, como o da capital do Rio Grande do Norte, Natal.

Já em dezembro do ano passado, a cidade de Olinda, em Pernambuco, transformou em norma jurídica uma proposta basicamente igual à apresentada por Laiz Perrut em Juiz de Fora. A Lei nº 6.193/2021 proíbe homenagens a escravocratas e a pessoas ligadas à ditadura militar, período que vai de 1964 a 1985. Da mesma forma, a norma também permite a modificação de nomes de ruas ou espaços públicos nomeados anteriormente à legislação e que homenageiam as figuras elencadas pela lei.

Seguindo os exemplos, nos últimos anos, ocorreram discussões sobre uma possível troca de nome da Ponte Rio-Niterói, no Rio de Janeiro, batizada oficialmente de Costa e Silva – segundo presidente militar, responsável por decretar o Ato Institucional nº 5 (AI-5).

Em 2014, a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados chegou a aprovar um projeto de lei, de autoria do deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ), para rebatizar a ponte com o nome de Herbert de Souza, o conhecido Betinho, sociólogo que foi exilado e, após a anistia, se engajou numa luta de combate à pobreza e à fome.

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Desde então, o texto não foi apreciado pelo plenário e segue pendente. Hoje, o projeto está apensado a outro, que quer dar o nome do ator Paulo Gustavo à Ponte Rio-Niterói. A proposta é de autoria do deputado federal Chico D’Angelo (PDT-RJ). Vale lembrar que Niterói é a cidade natal de Paulo Gustavo, que morreu no ano passado, aos 42 anos, em decorrência da Covid-19.

Em São Paulo, a Câmara Municipal aprovou a mudança do nome do Elevado Costa e Silva, o popular “Minhocão”, para Elevado Presidente João Goulart, que foi deposto pelas Forças Armadas no dia 1º de abril de 1964. A lei que trata da alteração foi sancionada em 2016.

Lei municipal restringe mudanças de nomes de rua

Discussões similares já ocuparam o plenário da Câmara em um passado recente. Em 2012, por exemplo, o então vereador – hoje, deputado estadual – Roberto Cupolillo (Betão, PT) anunciou a intenção de apresentar uma proposta para modificar o nome da Avenida Presidente Costa e Silva pelas mesmas razões que embasam o projeto de lei apresentado por Laiz Perrut. Entre outras situações, o aceno de Betão motivou o ex-vereador José Fiorilo a propor limitações às possibilidades de alteração nas denominações de logradouros públicos.

A proposição de Fiorilo foi transformada na Lei municipal 12.871/2013, que determina que as mudanças de nomes de vias públicas só poderão ocorrer em casos específicos. Mesmo assim, para que uma troca ocorra, será necessária a autorização da maioria – metade mais um – dos moradores da rua em questão. Assim, as modificações ficam proibidas, salvo em caso de homônimos ou a similaridade ortográfica ou fonética, que possam causar dúvidas na identificação do endereço. Além desses dois casos, a única outra hipótese admitida refere-se aos nomes que exponham os moradores a situações vexatórias.

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