Atleta transgênero juiz-forana disputa competicão universitária e rompe barreiras
Primeira mulher transgênero a participar de uma competição universitária no Brasil – o Universitários, a jogadora juiz-forana de vôlei Maria Cysneiros fala sobre dificuldades, preconceitos e vitórias e é tema de artigo acadêmico no JUBs
Maria Cysneiros da Costa Reis tem apenas 24 aos de idade, mas é muitas mulheres em um só corpo. Ela é a estudante de Arquitetura do Centro de Ensino Superior (CES), onde cursa o sexto período, é gamer, professora de dança, pratica poledance como modalidade esportiva e também joga vôlei representando sua instituição de ensino. E foi graças a essa última atividade que – mesmo sem ter noção da importância do seu ato – ela rompeu mais uma das barreiras da integração na sociedade ao se tornar a primeira atleta mulher transgênero a participar de uma competição universitária no país, ao entrar em quadra para disputar a Universitarius. A competição realizada em Juiz de Fora teve início em maio e reuniu 23 instituições e mais de 1.400 atletas, e o ineditismo da sua participação ainda rendeu um artigo acadêmico que foi apresentado em outubro durante o JUBs (Jogos Universitários Brasileiros).
Se o ineditismo do ato chamou a atenção de tantos, para Maria Cysneiros era apenas mais uma atividade da sua vida atribulada, como todas as outras que faz regularmente desde que decidiu assumir sua condição de mulher trans. “Achava que iria apenas participar e ir embora”, confessa. “Não imaginava que iriam me procurar para entrevistas, ter tanta visibilidade, haver preocupação a respeito da exposição da minha pessoa, que iria me tornar a ‘Maria jogadora de vôlei’. É apenas um hobby como o cosplay, o (game) ‘League of Legends’. Era o equivalente à pelada de quarta-feira à noite dos homens.”
De acordo com o COI
A participação no evento, porém, precisou atender a uma série de exigências. Segundo a diretora operacional do Universitarius, Eduarda Alana de Gouvêa Tavares, 22 anos, eles foram avisados pelo CES, ainda no período de inscrições, que Maria era trans. “Para nós foi uma surpresa positiva. Nós temos a questão da inclusão como um dos princípios do Universitarius, mas nunca havia aparecido uma ou um atleta transgênero. Como temos a chancela da Confederação Brasileira do Desporto Universitário (CBDU), procuramos saber como proceder para não haver nenhum problema durante ou depois da competição”, relembra.
“Eles deram todo apoio e explicaram que ela deveria estar de acordo com as exigências do COI (Comitê Olímpico Internacional), entre elas se tomava hormônios. A Maria fez uma declaração garantindo que cumpria as exigências, e não tivemos problemas”, acrescenta. Como resultado, Maria ajudou a equipe feminina de vôlei do CES a chegar às semifinais e conquistar a quarta colocação, numa competição que envolveu 18 equipes.
“Nossa intenção é trazer mais gente para participar, tanto que em 2018 teremos faculdades de outras cidades. Apoiamos o esporte de participação, mesmo sabendo que o de competição é legal. E é legal ter pessoas como a Maria, que não deixam de fazer o que querem por causa da opinião alheia. Qualquer pessoa com a situação parecida com a dela pode nos procurar para saber como participar, que terá nosso apoio e carinho”, ressalta Alana.
Artigo acadêmico foca luta pelo reconhecimento
A participação inédita no Universitarius rendeu frutos não apenas nas quadras. Ciente da importância do fato, Eduarda Alana – que está no 7º período do curso de Direito na UFJF – desenvolveu um trabalho acadêmico a partir da história de Maria Cysneiros. O artigo foi inscrito e aprovado para participar dos JUBs (Jogos Universitários Brasileiros), realizados em outubro em Goiânia (GO). Única estudante de Minas Gerais a participar na modalidade trabalhos acadêmicos, ela ficou em sétimo lugar entre 21 participantes.
“Há uma teoria no direito, a luta pelo reconhecimento, que diz que todos nós passamos por isso em algum momento. Para a Maria pode ser natural jogar vôlei, mas para muita gente, não”, comenta. “E o esporte é uma esfera autônoma de reconhecimento, e foi por aí que norteamos o artigo.”
Com o título “O esporte como esfera de luta pelo reconhecimento: Maria, a primeira trans do Universitarius”, o artigo foi desenvolvido em pouco mais de um mês a tempo de ser inscrito no JUBs. “A repercussão foi maravilhosa. O pessoal da banca ficou surpreso e feliz por apresentarmos um tema atual, que pela primeira vez foi abordado no JUBs. Tivemos muitos comentários positivos de professores e alunos que também querem escrever sobre temas parecidos.”
Por outro lado, Maria não sabia que havia virado tema de um artigo, visto que ele foi elaborado a partir de entrevistas para outras mídias e dados da competição. “Eu achei normal, legal. Ajuda a abrir a mente das pessoas, que não sabem o que é identidade de gênero, transgênero, opção sexual. Para nós que já vivemos isso é normal.”
Em busca do seu lugar no mundo
O vôlei já esteve presente na vida de Maria Cysneiros durante parte da adolescência, mas voltou ao seu cotidiano na faculdade, quando ela passou a praticar o esporte como passatempo com amigos e amigas. Foram eles que decidiram participar do Universitarius, e, sem ter ideia do efeito da sua presença em quadra, a estudante de arquitetura topou participar. Bem diferente da situação de anos atrás, quando jogou pelo time masculino do Colégio Academia durante a sexta e sétima séries. “Cheguei a ganhar o prêmio de Mérito Esportivo na sétima série, mas parei porque os colegas de equipe cresceram, e eu não. Não sabia o que estava fazendo ali no time masculino”, relata.
Esse sentimento de não estar no lugar certo já estava com Maria desde os primeiros anos de vida. “Desde pequena sempre me via mulher, mas não entendia porque vestiam minha irmã como menina, e eu não. Passava esmalte nos dedos e falavam que era coisa de menina, e eu dizia ‘e daí?'”, lembra. “Na creche só andava com as meninas, me identificava com elas.” Maria conta ainda ter sofrido bullying na época da escola, da dificuldade de usar as roupas que a sociedade definia como “as certas”. “Só me vestia com bermuda e camiseta para não andar pelada na rua, não me sentia à vontade.”
Enfim, a mudança
O conflito entre a pessoa que todos viam e a Maria que trazia dentro de si ficou ainda mais difícil em 2015, a ponto da jovem repetir dois períodos na faculdade. Foi o momento de dar o rumo que desejava à sua vida: passou a tomar hormônios e falou com a coordenação do curso que queria ser chamada, a partir daquele momento, de Maria, além de usar roupas femininas e usar o banheiro das mulheres.
A transição teve, entretanto, seus problemas. “Quando comecei a transformação vi o quanto o machismo ainda existe, assim como o preconceito e a transfobia, além do fetiche por ser uma pessoa trans. Existe toda uma ignorância, ainda, a respeito de identidade de gênero, orientação sexual; entender essa diferença é compreender o que rola em nossa volta”, acredita.
O desejo de ser para o mundo de acordo com o que havia dentro de si superou as adversidades. Segundo ela, os professores observaram que seu rendimento melhorou desde a mudança, e sempre pôde contar com o apoio da família. “Meu avô, Mário Cysneiros, tem 95 anos e era militar, mas paga minha faculdade e me respeita, assim como a minha família.” Mas ninguém tem sido mais importante que sua mãe, Mariléa. “Ela é super coruja, minha melhor amiga. Paga meus hormônios, meus luxos… Só posso agradecer a Deus por ser aceita pela minha família, pelos amigos. Vejo tantas pessoas trans sendo expulsas, não aceitas pelas famílias, e isso me dói.”
Sonhos e metas
Para o futuro, Maria Cysneiros continua a ser várias em uma só. Além de garantir que vai participar do próximo Universitarius (“estamos procurando novas meninas para o time”), ela tem vários planos. “Vou começar a trabalhar em uma empresa júnior de arquitetura, e o que mais quero é me formar na faculdade, trabalhar no meio, fazer mestrado. Quero aprender outras línguas também (ela já domina o inglês), mas, principalmente, viver.”