Com esclerose múltipla, juiz-forana conta como o ciclismo lhe trouxe amor, saúde e qualidade de vida

Fernanda Campos, diagnosticada com a doença há quinze anos é apresentada ao ciclismo pelo namorado, Wander Jordão, e ganha autoestima, tônus muscular e equilíbrio do corpo e da alma


Por Mauro Morais

16/12/2018 às 07h57

Em perfeita sintonia, Fernanda e Wandinho pedalam em sua bicicleta Tandem para todo o lado, chamando a atenção por onde passam (Foto: Marcelo Ribeiro)

Em algumas horas, a miniatura transformou-se na agigantada estátua de 30 metros de altura e 28 metros de largura, além de suas mais de mil toneladas. Nos minutos finais, quando Fernanda de Mello Campos já se sentia uma miniatura diante do monumento instalado a 709 metros acima do nível do mar, os amigos se revezavam ajudando a empurrar a bicicleta do modelo Tandem, com dois assentos e uma única corrente a ligar os dois pedais. Pilotado pelo namorado Wander Campos Jordão, o veículo parecia exageradamente pesado.

O morro era tanto, mas a emoção de Fernanda fazia seu esforço menor. Pela segunda vez chegava ao Cristo Redentor, onde só havia ido no tempo de criança, quando limite não era palavra que cabia em seu vocabulário. Aos 26 anos, quando a fadiga excessiva prenunciou o diagnóstico de esclerose múltipla, Fernanda passou a guiar-se pelo que era possível. Até a chegada de Wandinho, como chama carinhosamente o homem de 52 anos, oito a mais que ela, hoje com 44. Foi ele quem lhe disse: “Você consegue, Fernanda!”. Ela não duvidou. E começaram a pedalar.

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Dez anos dentro de casa

Por quase dez anos Fernanda tornou a casa sua única paisagem, entre 2005 e 2015. O computador era o mundo, e nada mais. A bicicleta, que na infância era preterida pelos patins, sua preferência, estendeu de tal forma seu universo que se tornou uma das maiores apostas dela na recuperação. “A gente anda menos do que deseja. Normalmente, aos sábados. Mas se um sábado chove, ficamos 15 dias ou mais sem andar. O condicionamento ideal seria andarmos quatro vezes por semana. Quanto mais ela pedalar, mais vai ajudar ela”, explica Wander.

“Nosso sonho é fazer viagens saindo de Juiz de Fora, pegando o litoral, porque Minas Gerais tem muitas montanhas. Daqui para Barbacena são 50km, pode ser perto mas, às vezes, distâncias pequenas assim têm um único morro que inviabiliza todo o passeio”, acrescenta ele, um dos incentivadores da namorada no projeto de passeios para divulgar o caráter terapêutico do ciclismo, o tratamento alternativo da esclerose múltipla com a vitamina D e, também, a importância da acessibilidade na construção de uma sociedade mais inclusiva.

O último surto de Fernanda foi em 2010, e logo em seguida ela aderiu ao tratamento alternativo de tomar, em cápsulas, altas doses de vitamina D e fazer uma dieta com restrição a cálcio. “A doença estabilizou, as feridas cicatrizaram e diminuíram de tamanho. Já tem sete anos que faço tratamento com vitamina D. Não tenho mais piora. Tomo três litros de água por dia e preciso comer peixe grelhado. Agora tomo um polivitamínico e como duas claras de ovos todos os dias antes do almoço”, conta, revelando a disciplinada rotina alimentar.

Antes disso, porém, Fernanda tomava injeções que resultavam em estressantes e assustadores efeitos colaterais. “Eu tinha altas dores de cabeça, enjoos, mal estar e muita dor no corpo. Eu estava recém-casada, via meu marido ir trabalhar, e ficava em casa, sozinha, passando muito mal. Não sei como aguentei”, diz. Num crescente, Fernanda já não conseguia pentear o cabelo ou partir uma pizza. A visão direita era dupla e a esquerda, embaçada. Já tinha dificuldades para gesticular, o corpo estava rígido, e o cansaço era profundo. Dois meses depois de aderir ao tratamento alternativo com vitamina D, largou de lado o andador.

No começo, um clique

Wandinho e Fernanda encaram com animação um morro em Aiuruoca (Foto: Arquivo Pessoal)

Há quase dois anos, Fernanda e Wander clicaram na foto um do outro num aplicativo de namoro. Dali a conversa migrou para o Facebook, onde ele viu fotografias dos irmãos dela. “Uma das irmãs dela é casada com um amigão meu. E eu já os conhecia. Quando era mais novo, namorei uma menina que era vizinha deles. Tudo isso fez com que ficasse mais fácil de a gente se encontrar”, recorda Wander. “Nunca tinha visto ele, foi coisa do destino”, aposta Fernanda, que já na rede social contou de suas limitações. “Ele me chamou para sair e eu fui procurar saber sobre o bar e vi que tinha escadas.

Falei com ele que eu tinha dificuldades para subir escadas e ele falou para arrumarmos outro lugar. Ele agiu naturalmente e eu senti o carinho e a compreensão dele. Até que fui para a granja que ele tem e, chegando lá, tinha uma rampa, mas ele me pegou no colo e me deixou muito à vontade. Pensei: ‘Meu Deus, ele nunca mais vai querer me ver!’ Mas isso foi na sexta e no sábado já saímos outra vez”, conta ela, aos risos.

“Eu não sabia que a dificuldade era tanta. Ela me falou que fazia fisioterapia e eu pensava, a princípio, que era algo passageiro, como um tombo”, lembra Wandinho. “Talvez, por vergonha ou medo eu não tenha detalhado bem”, reconhece a namorada. “Assim que vim buscar ela, ela já foi até o carro numa bengalinha e eu coloquei o pé dela para dentro. Mas não me assustei. Não vejo problema nenhum nisso.”

Quando o namoro engatou, Fernanda passou a se enxergar com a generosidade dos olhos dele. E os sorrisos fazem parte do tratamento. “Ele me ajuda o tempo todo. Eu me sinto tão segura que, se vejo uma escada, sei que vou subir. Não vejo empecilho nenhum mais”, emociona-se ela, para logo explicar: “Essa doença tem muito a ver com o emocional. Eu andando de bike, fazendo esses passeios, conhecendo pessoas, sinto um bem estar que explode o meu emocional e, por consequência, isso faz muito bem para o meu físico. A pessoa tem que estar feliz, porque o emocional se liga ao físico.

“Quando nos conhecemos, eu já estava com essa limitação. Ele sempre gostou de andar de bike. E como eu iria acompanhar ele? Até que ele teve a ideia de comprar essa Tandem, que é uma bike de dois lugares. Tomei gosto, e às vezes fico mais animada que ele para andar”

É impressionante, porque, quando estou baixo astral meu corpo reflete isso.” Naturalmente entusiasmado, Wandinho logo percebeu que encorajar a namorada valia mais do que qualquer comprimido. “Não vejo a deficiência dela”, diz ele, que já levou Fernanda para pedalar em Aiuruoca. Ela se recorda que não resistiu às grandes inclinações. Mas orgulha-se de não ter sido a primeira do grupo a abandonar a bike.

Em Cabo Frio, para onde também foram, pedalaram até a vizinha Búzios. Na praia, ela conta, ele cruzou a faixa de areia carregando-a nas costas. “Faço dentro das minhas limitações também, porque não sou um cara atlético, mas nos viramos da forma como podemos”, comenta ele, que com ela integra o grupo Pedal de Sábado, em referência ao dia em que se reúnem para os passeios. Sozinhos ou em grupo, Fernanda e Wander ainda estão habituados a seguir, pela BR-040, da Zona Norte a Torreões.

“Quando nos conhecemos, eu já estava com essa limitação. Ele sempre gostou de andar de bike. E como eu iria acompanhar ele? Até que ele teve a ideia de comprar essa Tandem, que é uma bike de dois lugares. Tomei gosto, e às vezes fico mais animada que ele para andar”, ri ela, mostrando o guidão de trás fixo e os pedais que possuem uma trava para impedir seus pés de escapulirem. Na roda dianteira, Wandinho instalou um pequeno motor para suavizar o peso da bike.

O delicioso (e dolorido) sinal de estar viva

Em sincronia, o giro no pedal que Wander faz, Fernanda também faz. Ele dita o equilíbrio e Fernanda acompanha. “Dependendo do lugar, até fecho o olho e vou”, conta ela. Em Cabo Frio, caíram na areia. Sem traumas. Quando ela começa a querer conversar muito, Wander cobra o foco. A concentração de Fernanda contribui para que os movimentos sejam mais ritmados, reduzindo, assim, o esforço dele. Ainda que não faça muita força, ela é obrigada a realizar o movimento. A dor, logicamente e inevitavelmente, é um resultado.

“Não sinto dor normalmente. Quando ando de bike e acordo com dor muscular, fico feliz. É uma delícia”, diz ela, que pela rigidez causada pela doença, desacostumou-se a fazer alguns giros. “Já melhorei bem fisicamente. Estou com mais força nas pernas. A questão dos espasmos, a flexibilidade, o preparo físico, tudo melhorou, eu emagreci e minhas pernas ficaram mais grossas. A bike é uma fisioterapia deliciosa”, afirma Fernanda.

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Para subir na bike ela recebe a ajuda do namorado, que ajuda a passar sua perna para o outro lado do quadro e fixar as sapatilhas nos pedais. Tudo parece tão fácil e simples. É a naturalidade com que fazem tudo. “As pessoas acham o máximo ver a gente andando na Tandem, e quando me veem saindo dela, e veem a minha dificuldade, mais legal elas acham”, conta ela, já acostumada a receber mensagens sobre o quanto têm servido de inspiração. “Nunca me passou pela cabeça uma revolta muito grande. Passava uma tristeza de não poder usar salto ou poder correr, mas sempre encarei bem. Por eu gostar tanto de viver, não me entreguei”, pontua.

A única opção é seguir adiante

“Sempre tem passeio, mas às vezes não dá para a gente ir”, lamenta Fernanda que está aposentada e faz companhia à mãe, de 85 anos, e ajuda a cuidar da irmã Eliane, 52, também diagnosticada com esclerose múltipla, mas uma década antes de Fernanda. A doença de Eliane evoluiu a tal ponto que ela vive restrita ao leito e sem nenhum dos movimentos, alimentando-se apenas por sonda. “Já sofri muito ao ver minhas possibilidades e minhas melhoras e ver a condição dela. Sair, ir a um churrasco, a uma festa, e ver ela na cama, me fazia sofrer muito. Sofria em pensar que tive a oportunidade de continuar vivendo, enquanto ela ficava na cama. Hoje me acostumei e confio que ela está evoluindo espiritualmente”, emociona-se ela. Wander, por sua vez, passa seus dias fabricando e instalando aquecedores solares.

“A bike tem um lado bom e também um lado cruel. Numa sala de ginástica, quando você cansa, pode parar e ir para a casa. A bicicleta, não. Se o pneu furar, se começar a chover, se não quiser mais, não há o que fazer, a não ser seguir em frente. Tem que encarar. O positivo disso é que ajuda a superar os limites”

Solteiro e sem filhos, Wandinho chegou a morar por oito anos em Ibitipoca, de 1999 a 2007, onde deixou de lado a paixão pelo ciclismo, que assim como na vida de Fernanda, tem um papel fundamental. A superação é para todos, garante. A lição, conta, aprendeu num sábado, quando escolheram passear na Represa João Penido, no Barbosa Lage, mas começou a chover e não houve saída a não ser seguir.

“A bike tem um lado bom e também um lado cruel. Numa sala de ginástica, quando você cansa, pode parar e ir para a casa. A bicicleta, não. Se o pneu furar, se começar a chover, se não quiser mais, não há o que fazer, a não ser seguir em frente. Tem que encarar. O positivo disso é que ajuda a superar os limites”, reflete. Fernanda se enche de fôlego: “Futuramente tenho a pretensão de ter a minha própria bike, nem que no começo seja com rodinhas, depois com roda elétrica”. O namorado já pesquisou e sugere um modelo sem pedais, que ajuda no equilíbrio inicial, para, em seguida, migrar para outra completa. “Às vezes me pego sonhando com isso”, diz ela.

Braços abertos sobre a Guanabara

Casal percorreu 55km em passeio ciclístico até o Cristo Redentor, no Rio, com um grupo de amigos (Foto: Arquivo Pessoal)

As rochas que compõem o Corcovado se formaram há cerca de 570 milhões de anos e integram uma cadeira de montanhas que se estendem do Espírito Santo ao Paraná. Do Alto da Boa Vista até a estátua do Cristo são aproximadamente 11km de um percurso todo feito numa estrada chamada Redentor. Wander já havia percorrido distâncias maiores. Em sua memória, a mais longa delas foi a viagem que fez de bicicleta de Juiz de Fora até Saquarema, onde passou 25 dias pedalando. Era jovem. E transgressor. A emoção era outra, bem diferente da que o levou a pedalar até o principal monumento brasileiro, aos 52 anos. Ele, a namorada e amigos saíram de Juiz de Fora numa van, ainda de madrugada.

Uma carreta acoplada levou as bikes, que foram descarregadas no pé da estrada. Os últimos 2 km foram pesados, lembra Wandinho. “Temos uma roda elétrica, mas ela é muito fraquinha. Ela leva a bike, e o nosso peso seguramos no pedal”, diz. “No topo o morro é muito inclinado, vai virando, virando, e a gente vai olhando o Cristo ficar pertinho”, lembra Fernanda, que após uma sessão de fotos, retornou com o grupo pelo Alto da Boa Vista, atravessando a Barra da Tijuca e chegando até a Prainha, entre o Recreio dos Bandeirantes e Grumari. Após quatro horas de um trajeto de 55km, uma parada num bar à beira-mar, todos entraram novamente na van. Fernanda e Wandinho chegaram em casa quando o relógio marcava meia-noite. O cansaço era grande. A alegria, também. “Eu quero sempre provar para mim que consigo.”

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