Sapo de fora: Redenção de um perna de pau


Por Renan Ribeiro

15/06/2018 às 07h00- Atualizada 15/06/2018 às 18h00

Nunca fui bom de bola. Nasci um verdadeiro perna de pau. O que no Brasil é capaz de formar pessoas totalmente frustradas. Só quem passou por aulas de educação física sempre focadas no danado do futebol sabe o que é. Sempre quis ter essa habilidade. Morria secretamente de inveja dos outros moleques da minha rua, que sempre tiveram muito gosto e talento para o futebol. Eu não conseguia enganar ninguém, até quando pediam pra eu ficar no gol, função delegada aos pernas de pau e aos mais novos do grupo. Mesmo me esforçando muito, eu era ruim, não havia nada a ser feito quanto a isso. Até no videogame. Os vexames eram piores do que o famigerado sete a um para a Alemanha do último mundial. Passei a odiar o esporte desde cedo, não por ele, mas por minha total falta de talento para a coisa. Não aguentava nem ver pela TV, era uma tortura que todos fossem melhores, em um país que valoriza muito a aptidão para o futebol. Mas na Copa era diferente. Eu abria uma brecha. Era o Brasil, meu país entrava em campo.

Mas o que me animava nas Copas não eram os jogos, era a bagunça. Geralmente caiam durante as férias escolares. Com o dia livre, fazíamos um pedágio na rua, recolhíamos dinheiro para viabilizar os enfeites. Bandeirinhas, faixas e a pintura da rua, minha parte favorita. A primeira lembrança vívida que tenho desses momentos é da Copa de 1998. Muita gente vinha ajudar. O pica-pau francês era o mascote daquela edição, ele ficou por meses pintado na frente de casa, até se apagar por completo pelo constante movimento de veículos.

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Até eu que nunca tive time algum, não acompanhava nada, me sentia muito entendido. Decorava algumas jogadas, fazia comentários e até xingava. A derrota de 98 foi dolorida. Todo mundo triste, e a rua, que na minha opinião estava linda, toda pintada e enfeitada, não combinava com aquele climão. Doeu. Doeu, mas passou. Outras vieram depois. Outros mascotes, outros pedágios, mas a festa era a mesma. Em 2002, a última Copa em que me envolvi, de fato, passei longe de qualquer comemoração. Derramado no sofá, com uma febre fortíssima e totalmente impedido de estar em um churrasco na casa do vizinho, onde todos estavam, só queria que tudo acabasse logo.

A última vez que me atrevi a chutar uma bola foi durante o interperíodos da faculdade. Se eu não jogasse, não haveria time. Com meu currículo cheio de péssimos momentos no futebol, no primeiro jogo, meu pai perguntou a meus companheiros de time se eles realmente me queriam na partida. Proteção de pai, coisa bonita de ver. Ele não queria que eu sofresse mais com a minha falta de habilidade.

Mas o objetivo do Malu 70 não era ser o melhor. Era incomodar. Era estar lá e fazer bagunça. Era zoar sem qualquer preocupação em ser taxado de pior, e se fosse, nos juntávamos para rir. Nossa preocupação era ser a mosca na sopa e ter orgulho disso. Achei meu lugar, minha redenção. O melhor campeonato do qual participei na vida, com os melhores jogadores. Naquele momento, o futebol me deu alguma coisa, depois de tantos anos de desprezo e esculhambação: uma lembrança que valia a pena preservar. Se a Copa é pão e circo, como as redes têm teimado tanto em discutir, o resultado não me interessa. O que me interessa é, exatamente, o que a TV não mostra: todas as grandes vivências que construímos fora das quatro linhas.

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