Fome avança, e juiz-foranos passam aperto para garantir alimentação
Alta no preço dos alimentos, do gás de cozinha e falta de oportunidades faz com que famílias busquem alternativas para garantir o mínimo
“Só tenho almoço e jantar. Arroz e feijão é todo o dia, e o macarrão também tem entrado muito no meu cardápio. Quando tem alguma verdura, a gente faz, mas a maioria das vezes é isso. Não tem carne. Só no final de semana, e quando dá. O frango e a carne de porco eram a carne do pobre, mas hoje em dia nem isso, porque subiu muito”, afirma Jaqueline Nascimento, mãe de três filhos de 11, 13 e 18 anos. Jaqueline tem 36 anos e trabalhava como faxineira antes da pandemia. Hoje, mora com os filhos e a sogra em uma casa alugada no Bairro Dom Bosco, Zona Leste de Juiz de Fora. A renda mensal da família vem do auxílio emergencial.
“Com essa pandemia, está horrível arrumar trabalho de faxina. Eu realmente estou vivendo com os R$ 150 que tenho ganhado do governo. Apesar de ser pouco, é o que me ajuda a conseguir comprar as coisas”, conta a faxineira. O aluguel e as contas de água e de luz são pagos pela sogra, que recebe pouco mais de R$ 700 de um benefício do INSS. Desse dinheiro, não sobra nada. Os alimentos mais caros como arroz, feijão e óleo, Jaqueline tenta pegar de doação na Associação dos Amigos (Aban), que já ajuda a família há algum tempo. Com os R$ 150 do auxílio, ela precisa “se virar” para comprar mais alimento, gás de cozinha, além de itens de higiene pessoal. “Para os meus filhos, eu queria dar uma vida melhor, um futuro diferente, porque tá muito difícil. Pra mim, eu espero um trabalho, porque se consigo um trabalho, consigo suprir a minha família.”
O relato da faxineira explicita uma triste realidade que vem ocorrendo em Juiz de Fora e em todo o país: a pandemia agravou a situação de pobreza dos mais vulneráveis, que viram sumir a comida na mesa. Segundo os dados do Cadastro Único (CadÚnico), fornecidos pela Secretaria de Assistência Social da Prefeitura de Juiz de Fora, em julho deste ano, 4.503 famílias estavam em situação de pobreza no município, enquanto 15.757 viviam em situação de extrema pobreza. Em janeiro, 13.965 famílias viviam nesta situação. Ou seja, em seis meses, quase duas mil pessoas passaram a viver em extrema pobreza na cidade, com renda mensal de até R$ 89. No caso da família de Jaqueline, a perda de renda fez as refeições ficarem mais espaçadas, apenas com almoço e jantar. E o básico arroz, feijão, carne e salada começou a aparecer com menos frequência no prato.
Além do aumento do preço dos alimentos, o encarecimento do gás também influenciou nos hábitos alimentares da família. “A janta é o que sobrou do almoço, porque não dá pra ficar fazendo almoço e janta não. O gás tá mais de R$ 100, não tô podendo. Eu tive que comprar gás na semana passada, já é quase o dinheiro que eu ganho no mês.” Com o cenário piorando cada vez mais, a família decidiu começar a fazer uma horta improvisada no quintal da casa para ajudar na alimentação. Até agora, já plantaram cebolinha, pimentão e um pé de chuchu. “A minha sogra sempre gostou de horta, e ela conseguiu fazer uma aqui. Agora vamos ver se vai crescer. Tomara, porque vai ajudar muito na alimentação.”
‘Tem dia que é só fubá que estava no armário’
Na casa da Eliza do Carmo, 38, moradora do Bairro Bela Aurora, a situação não é muito diferente. Por lá, o aumento no preço do gás fez a família usar, com mais frequência, o fogão à lenha. “A gente já tinha o fogão a lenha há um tempo, mas usávamos mais o a gás, porque é melhor. Hoje tá mais difícil fazer isso.” A lenha, que Eliza costuma ganhar dos vizinhos ou pegar na rua, é qualquer pedaço de madeira, até de armário que foi jogado fora, que possa ajudar a acender o fogo. Ali a família faz o almoço e o jantar e ainda esquenta a água para tomar banho. “A nossa luz é cortada há uns seis anos. A minha irmã, que mora na casa de cima, empresta a luz pra gente, mas o banho tem que ser assim, com água que a gente esquenta no fogão.”
Eliza nunca teve a oportunidade de trabalhar, já que, desde muito cedo, precisou cuidar da filha que tinha deficiência e já faleceu. Hoje, ela diz que recebe um salário mínimo de pensão, mas que o valor foi reduzido à metade por conta de um empréstimo bancário. No final, sobra R$ 400 para ela no mês. “Esse dinheiro não dá pra nada, porque pago conta de luz, que é dividida aqui em casa, o gás e o dentista da minha filha. Em relação à comida, eu passo um bocado de aperto. Tem dia que não tem nada. Tem dia que é só fubá que estava no armário. Carne, muito difícil. Antes da pandemia, eu comprava mais carne. Hoje tenho quatro ovos, porque uma pessoa comprou pra mim, porque carne mesmo não tenho.”
Com o aumento no preço dos alimentos, o cardápio do mês é restrito, às vezes, nem o básico dá pra comprar. “Eu compro arroz, às vezes açúcar, feijão, macarrão. Vou comprando essas coisas, mas só quando tem dinheiro. Aí quando não tem dinheiro, vai aquilo mesmo que tiver. Macarrão, a gente faz uma sopa, a gente faz uma mistura qualquer, angu, vai misturando as coisas.”
Na busca pela substituição da carne
A criação de animais para o consumo foi o que ajudou Paulo Geraldo, morador do Bairro Graminha, a continuar consumindo carne. Há dois anos, Paulo passou a criar galinhas em casa. “Eu já gostava de criar galinha para consumir e até mesmo vender. Mas aí como as coisas foram encarecendo muito, fui começando a progredir mais para poder vender e não passar aperto, porque a carne está muito cara.” A criação, que antes era composta por 30 animais, agora tem só oito. Isso porque não foi apenas o preço da carne que subiu, mas também o da ração e do milho, que são utilizados para manter os animais. “O saco de 50kg custa R$ 115, mas antigamente era R$ 70 ou R$ 80. Esse aumento foi do começo da pandemia pra cá, quando as coisas foram aumentando.”
Além da dificuldade no consumo da carne, Paulo também sentiu o aumento do preço do ovo. No início, ele conseguia alimentar as galinhas com ração, de forma que elas botassem ovos também. Com a alta do custo, teve que diminuir a quantidade, parando a produção, o que também tirou o item do cardápio. “Eu parei de comprar ovo por causa do preço alto, porque é menos um gasto. Antes da pandemia, já fazia isso, mas não tanto quanto agora. Peço a Deus que melhore, e o preço das coisas abaixe.”
Constantes aumentos em itens básicos
De acordo com a última atualização feita pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras), em agosto de 2021 a cesta básica com 35 produtos no país custava R$ 675,73. Em 2020, o preço era R$ 552,84. Além do aumento no valor pago pelos alimentos, outros itens também tiveram os preços elevados, o que ajudou a piorar o poder de compra dos brasileiros. Segundo o IBGE, o preço do gás de botijão continuou subindo em setembro. Já foram 16 altas consecutivas. Em 12 meses, o gás acumula aumentos de 34,67%. O preço da carne chegou a recuar em setembro, mas nos últimos sete meses foram registradas altas consecutivas. O valor do frango também foi reajustado por conta da alta do custo da ração. Em setembro, o aumento foi de mais de 4%.
As famílias que nesse período passaram a produzir hortaliças em casa para o consumo não estão protegidas da insegurança alimentar. Segundo a secretária regional do Movimento Sem Terra (MST), Michelle Capuchinho, essa produção está mais voltada para a subsistência. “A plantação a curto prazo prioriza a produção de verduras e folhagem, porque elas possuem um ciclo de produção mais rápido, como a couve, alface e cebolinha. Isso não garante segurança alimentar para ninguém. Quando você produz em casa, muitas vezes é pra você ter qualquer coisa pra comer, ‘tapear a fome’.” Vice-presidente da Feira da Economia Solidária, Paulo Cezar relata: “Hoje, quando você tem o quintal e você aproveita plantando alguma coisa é melhor do que não aproveitar com nada, esse é o resultado da miséria que virou tamanha”.
Insegurança alimentar
Segundo o estudo publicado em 2021 “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, coordenado por pesquisadores da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em parceria com a Universidade de Brasília e a Universidade Federal de Minas Gerais, 59,4% dos domicílios entrevistados em todo o país estão em situação de insegurança alimentar. Desse número, 31,7% estão em insegurança alimentar leve, que é quando há preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro, além de qualidade inadequada na alimentação. Já 12,7% apresentam insegurança alimentar moderada, quando há redução quantitativa de alimentos, impactando os adultos e ocasionando uma ruptura nos padrões de alimentação. Além disso, o estudo apontou que 15% das famílias estão em insegurança alimentar grave, que é quando a redução quantitativa de alimentos também atinge as crianças. Nessa situação, a fome passa a estar presente no domicílio.
Segundo a coordenadora do Centro de Referência de Direitos Humanos e participante do Conselho Municipal de Segurança Alimentar, Erica Marques, nos atendimentos realizados pelo núcleo é possível perceber que hoje, a maior violação sofrida pelas pessoas mais pobres, é a violação do direito à alimentação. “A gente vê a ausência de uma política de segurança alimentar que abranja não só o matar a fome, mas o acesso a uma alimentação adequada, saudável, que forneça nutrientes necessários para uma boa saúde. Se você pensar hoje que as pessoas estão desesperadas por um local onde possam receber uma cesta básica de urgência, isso já nivelou muito por baixo a questão da perspectiva do direito ao acesso à alimentação.”
Ainda de acordo com Rafael Silva, também do Centro de Referência em Direitos Humanos, esse cenário persiste pelo desmonte dos serviços de assistência social. “O salário do trabalhador hoje está desvalorizado frente à crise econômica. Além disso, o desmonte dos serviços de assistência social contribuem para isso, porque a gente não tem como atender essas pessoas em situação de vulnerabilidade.”