Empresas testam semana de 4 dias de trabalho

Tribuna conversou com especialistas sobre como a redução nos dias trabalhados poderia afetar a qualidade de vida das pessoas e como a legislação brasileira enxerga a questão


Por Leticya Bernadete

06/11/2022 às 07h00

Vinícius Barreto é “influencer manager” na agência local WAG – We Are Gamers, que adotou a semana de trabalho de 4 dias, e aponta benefícios na nova rotina (Foto: Felipe Couri)

Em busca de melhorar a saúde mental e o bem-estar dos trabalhadores, uma jornada diferenciada tem sido testada por empresas em diferentes países: quatro dias de trabalho e três de folga. Essa redução segue o movimento global “The 4-Day Week Global” (em tradução livre, “Quatro dias por semana”), que iniciou em 2018 e ganhou forças com a pandemia da Covid-19, quando as formas de trabalho passaram a ser repensadas conforme as pessoas precisaram passar mais tempo em suas casas. No Brasil, o número de empresas que adotaram a mudança ainda é limitado, o que pode estar relacionado a barreiras culturais e, até mesmo, à ausência de legislação específica. A Tribuna ouviu especialistas sobre como a alteração poderia afetar o bem-estar dos trabalhadores e como a legislação brasileira enxerga a questão.

A agência de consultoria e serviços especializada em Games e E-sports WAG – We Are Gamers, de Juiz de Fora, está entre as poucas empresas brasileiras que adotaram a redução da jornada de trabalho para quatro dias, sem redução salarial. A mudança ocorreu em setembro deste ano, como uma ação do Setembro Amarelo, visando ao debate sobre a saúde mental de seus funcionários que, agora, contam com as sextas-feiras livres. Apesar de recente, a redução já demonstrou efeitos positivos para seus colaboradores, como no caso do Vinícius Barreto, que atua como “influencer manager” na agência desde novembro de 2020. Conforme Vinícius, o processo de adaptação a essa alteração na rotina de trabalho demanda equilíbrio e responsabilidade.

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“É um dia a menos na jornada, então cabe a nós adaptarmos nossas rotinas sem que isso afete a relação profissional com os clientes externos. Nessa mudança, eu percebi que poderia melhorar ainda mais minhas estratégias de organização e ter rotinas diárias mais leves, mas ao mesmo tempo mais focada e produtiva. Não aumentei carga horária em nenhum dia, foi questão de organização, e isso tem melhorado a cada semana”, conta.

Foco otimizado

Para Vinícius, a organização é, justamente, a peça fundamental para o cumprimento de tarefas dentro do prazo, otimizando, inclusive, o foco no trabalho. Além disso, a redução na rotina favoreceu a equipe como um todo, por reforçar um apoio coletivo e, também, por criar um clima “mais leve” devido ao dia a mais de folga. “Nós nos ajudamos sempre que possível para não deixar nenhuma ponta solta até o final da nossa semana de trabalho, e isso tem aproximado cada vez mais a equipe”, explica Vinícius.

No aspecto pessoal, o “influencer manager” da WAG também já tem observado resultados positivos. “O motivo da redução foi o foco na saúde mental. No meu caso, eu consegui perceber mudanças na primeira semana. Tive mais tempo para me dedicar aos amigos, família e namorada, além de usar esse tempo de folga para focar em projetos pessoais”, conta, acrescentando que o dia a mais de folga também traz um maior descanso e, consequentemente, melhora a produtividade para a próxima semana de trabalho. “Vejo que os resultados a longo prazo são ainda mais relevantes. A saúde mental é algo que deve ser sempre priorizada e não um assunto para ser deixado em segundo plano.”

Para Vinícius, a organização é, justamente, a peça fundamental para o cumprimento de tarefas dentro do prazo, otimizando, inclusive, o foco no trabalho (Foto: Felipe Couri)

Melhora na qualidade de vida

Inicialmente, houve uma preocupação por parte dos funcionários pelo receio de não cumprirem as metas com a redução dos dias de trabalho, de acordo com o sócio-diretor da WAG, Pedro Pegorer. “Conforme fomos fazendo as reuniões de avaliação e de feedback sobre esse processo, começamos a perceber que eles estavam se beneficiando muito com isso, apesar de nem todos conseguirem folgar na sexta”, explica, apontando que alguns setores da empresa, como de atendimento ao cliente, ainda mantêm disponibilidade nas sextas em caso de emergências. “No geral, eles conseguiram se organizar e, através disso, conseguiram ser mais produtivos nos quatro dias de trabalho.”

A agência conta com 18 funcionários, sendo 12 deles residentes em Juiz de Fora e os demais em outras cidades de estados como Pernambuco, Ceará, Santa Catarina e São Paulo. Todos os colaboradores atuam de forma remota desde a fundação da WAG, em maio de 2020, ainda no início da pandemia da Covid-19. Ou seja, a empresa já iniciou sua atuação em um formato diferente do tradicional – presencial – e com pessoas de diferentes lugares do país, o que demandou adaptação, assim como tem ocorrido nessa nova mudança na jornada. “Esses desafios são todos relacionados à saúde mental, e o principal benefício que conseguimos perceber é essa melhora na qualidade de vida de todos”, diz Pedro. “Acho que todos poderiam se beneficiar disso, tanto os patrões, conseguindo entregar um valor a mais para os seus funcionários, quanto os funcionários, conseguindo ter um contato às vezes maior com a família e ter um tempo a mais para poder curtir o fim de semana.”

The 4 Day Week Global

O projeto The 4-Day Week Global conta com iniciativas de pesquisa nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul e Reino Unido, sendo este o mais recente a iniciar os testes da jornada reduzida. Os primeiros resultados no Reino Unido, por exemplo, apontaram que, dos 3.300 trabalhadores que estão participando do levantamento, 46% acreditam que sua produtividade se manteve próxima do mesmo nível, 34% relataram que melhorou um pouco, enquanto 15% disseram ter melhorado significativamente. Além disso, 86% dos participantes afirmaram que muito provavelmente ou provavelmente considerariam manter a política quatro dias de trabalho por semana após o período de teste.

O The 4-Day Week Global conta com o auxílio de pesquisadores das universidades de Oxford (Inglaterra), Pensilvânia (EUA), Harvard (EUA), Boston (EUA) e Auckland (Nova Zelândia). A ideia é incentivar empresas a criar novas formas de trabalho que possam contribuir para melhora na produtividade, na saúde dos funcionários, e, também, para desenvolver um ambiente de trabalho mais sustentável.

Brasil ainda conta com barreiras na cultura organizacional, aponta especialista

Para a especialista em psicologia organizacional e do trabalho e professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Edelvais Keller, a redução nos dias trabalhados deve ser analisada a partir de três pontos: o lado do empregador, o lado do empregado e o lado da sociedade. No primeiro caso, a redução de jornada pode, por consequência, diminuir as ausências no trabalho, além de contribuir para o bem-estar dos funcionários, podendo impactar, também, no aumento da produtividade. Porém, é preciso considerar que as culturas organizacionais no país se baseiam “em crenças e valores que só olham para resultados e não olham para os seres humanos”. “Empregadores de muitas organizações privadas, públicas ou outras, em geral, ainda têm uma necessidade de controle e de poder sobre os trabalhadores, para que eles produzam cada vez mais e uma expectativa crescente de que as metas organizacionais e de produtividade sempre sejam aumentadas.”

Já para os trabalhadores, eles teriam mais tempo para cuidar da própria saúde, conviver mais com familiares e até usarem o tempo livre para investir em atividades fora do trabalho. “Se o trabalhador se sentir seguro que esta mudança não vai lhe gerar desemprego, ele poderia se sentir bem. Porém, o trabalhador vai poder confiar no empregador? Vai ser bem tratado quando voltar ao ambiente de trabalho? Ou vai ser pressionado sutilmente ou assediado moralmente para compensar o dia de folga e dar muito mais ‘entregas’ para a empresa?”, questiona Edelvais.

Em relação ao olhar para a sociedade, a professora relembra que, durante a pandemia da Covid-19 e a adoção do trabalho remoto por muitas empresas, verificou-se uma maior contribuição para o meio ambiente com a redução de circulação de automóveis, o que poderia refletir também na redução dos dias de jornada. “A natureza agradeceu porque o mundo parou por algum tempo. Todos nós havíamos perdido a conexão com a natureza e o resgate desta conexão por causa da pandemia foi importante para percebermos que somos parte dela.”

Confiança mútua

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Como destacado pela especialista, para entender, de fato, como a produtividade e o bem-estar são afetados pela redução da jornada, são necessárias pesquisas no país envolvendo o tema, comparando a jornada de quatro dias de trabalho e três de folga com a tradicional de cinco de trabalho e dois de descanso. “Na minha opinião, temos ainda muitos desafios pela frente e muitas barreiras culturais, educacionais, políticas, econômicas e psicossociais, entre outras, para serem derrubadas, para que a semana 4×3 possa ser uma realidade na vida dos trabalhadores brasileiros”, comenta.

“Uma das formas de vencermos tantas barreiras é por meio do fortalecimento das relações de trabalho, resgate da confiança mútua e do coleguismo entre os trabalhadores, para um esforço coletivo de conquistar juntos melhores condições de trabalho. Psicologicamente, é mais difícil suportar os constrangimentos das situações de trabalho quando se encontra só, sem a solidariedade dos pares”, destaca.

Jornada reduzida ainda não conta com legislação específica no país

Do ponto de vista trabalhista, não há na legislação brasileira alguma prescrição sobre a redução de jornada no país. O que existe é um limite máximo de tempo de trabalho previsto pela CLT: são oito horas diárias e até 44 horas semanais, como mencionado pelo advogado e coordenador do curso de direito do UniAcademia, Pierre Portes. “Tratamos essa semana de quatro dias como uma liberalidade da empresa, em que a empresa está, digamos assim, abrindo mão de uma jornada completa para trazer um bem-estar aos trabalhadores e confiando em uma maior produtividade e satisfação no emprego.”

Conforme o professor, uma legislação específica para essa jornada especial poderia solucionar certas lacunas que a redução pode gerar. Essas brechas poderiam ocorrer, por exemplo, na forma de aumento da carga diária de trabalho. Porém, como lembrado por Portes, há a possibilidade da prestação de apenas duas horas extras por dia, o que elevaria a jornada para 10 horas. Porém, essas horas a mais deveriam ser pagas como horas extras ou compensadas em bancos de horas, ponto que deve ser negociado através de um sindicato. “Todas essas dúvidas que ficamos quando tentamos aplicar a legislação que temos, seriam, em tese, resolvidas por uma legislação debatida, criada e pensada à luz dessa realidade da semana de quatro dias.”

Como ainda destacado pelo advogado, ao optar pela redução na jornada de trabalho, é importante que a empresa considere o tipo de atividade que exerce e quais setores estariam aptos a adotar essa semana diferenciada. “Para os trabalhadores, isso representa um bônus e gera uma satisfação e um maior compromisso até mesmo com a empresa. Se olharmos pelo outro lado, o que teria de ponto negativo é a preocupação quanto à produtividade, se o rendimento vai cair. Então, a empresa precisa, ao decidir adotar essa semana de trabalho, ter uma métrica bem eficiente para verificar a questão das tarefas que precisam ser entregues.”

 

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