Campanha arrecada livros para oficinas de literatura em penitenciária

Iniciativa é realizada com presas e presos em Juiz de Fora e, além de incentivar a leitura, oferece redução de pena


Por Júlio Black

31/08/2021 às 22h35- Atualizada 31/08/2021 às 22h46

Presas da Penitenciária José Edson Cavalieri podem ter remição de pena através da leitura (Foto: PJEC/Divulgação)

Uma série de iniciativas espalhadas pelo país buscam mudar, melhorar ou pelo menos tornar menos dramático o cotidiano da população carcerária. Uma delas é o projeto de extensão “Oficinas de literatura na Penitenciária José Edson Cavalieri”, coordenado pelo professor do Centro Universitário Estácio de Sá e também advogado Ricardo Braida, que tem procurado incentivar o hábito da leitura entre as detentas e detentos e, por meio da atividade, diminuir suas penas.

Para alcançar este fim, o projeto iniciou uma campanha de doação de livros para aumentar a disponibilidade de títulos na biblioteca do presídio. As doações podem ser feitas nos seguintes locais: Centro Universitário Estácio Juiz de Fora (Avenida Presidente João Goulart 600, Cruzeiro do Sul); OAB Juiz de Fora (Avenida dos Andradas 696, Morro da Glória); livraria Atena Bookstore (Rua Santo Antônio 583, Loja 52, Centro); e na Secretaria de Segurança Urbana e Cidadania (Avenida Sete de Setembro 768, Costa Carvalho).

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Segundo Braida, que também é escritor, um dos motivos para a campanha de doação é o fato de a biblioteca da Penitenciária José Edson Cavalieri (PJEC) ter apenas 30 títulos disponíveis, ainda que alguns deles tenham mais de uma cópia. “Queremos trazer mais títulos, com outros autores, para ampliar a visão de mundo deles”, explica. “Sabemos que a população carcerária não é de leitores vorazes, que vivem uma situação difícil, com alfabetização precária, escolaridade baixa – que é uma realidade do Brasil. Por isso, quanto maior a pluralidade de autores, de temas, melhores serão as atividades. É o efeito da arte, que tem a capacidade de trazer uma realidade diferente da nossa, ampliar a visão de mundo, provocar empatia.

Oficina de literatura e remição de pena

A iniciativa, porém, não se resume a aumentar a variedade de leitura dos presos. Ricardo Braida explica que ela inclui uma oficina literária, projeto que desejava realizar desde seus estudos sobre a literatura de cárcere (aquela produzida nas prisões) na época em que cursava mestrado e doutorado.

A oficina funciona da seguinte forma: a unidade prisional disponibiliza seu acervo para os interessados em participar das oficinas, que terão um mês para ler o livro e escrever uma resenha a respeito dele. Essas resenhas são recolhidas e avaliadas por uma equipe formada por Braida e estudantes da universidade. Essas avaliações são enviadas para o juiz da Vara de Execução Penal, responsável por aplicar a remição (redução) de pena dos presos participantes. Para ter direito à remição, o trabalho do detento precisa ter, no mínimo, nota 6. Atingindo a nota mínima, o preso tem direito a uma redução de quatro dias de sua pena, o que pode representar até 48 dias a menos no espaço de 12 meses.

Depois de algumas tentativas em outras cidades, o professor conseguiu firmar uma parceria entre a Estácio de Sá e a Comissão de Assuntos Criminais da OAB Juiz de Fora para realizar o projeto. “Já existia um ofício autorizando essas atividades educativas em Juiz de Fora”, relata. “Agilizamos os trâmites administrativos, mas aí veio a pandemia, que impediu as atividades presenciais e atrasou o projeto.”
Por causa da Covid-19, as oficinas de literatura tiveram início apenas este ano, e mesmo assim de forma remota. “Combinamos com a Lucinda Tavares, que trabalha na Edson Cavalieri, de analisarem o acervo que poderia ser utilizado, mas já tínhamos ideia da precariedade. Mesmo assim, tivemos 27 apenados na primeira oficina, e deveremos ter cerca de 50 para a segunda. Porém, para ter esse fluxo precisamos de um acervo maior e mais diversificado para que aqueles que queiram participar tenham uma variedade maior de livros, por isso a campanha de arrecadação. Com esse fim, temos contado com o apoio do Paulo Roberto, da Bookstore, da Letícia Delgado (secretária de Segurança Urbana e Cidadania) e do Leandro de Souza Araújo (presidente da Comissão de Assuntos Prisionais da OAB-JF).”

Ampliando a visão de mundo

De acordo com Ricardo Braida, a receptividade dos apenados, neste primeiro momento, tem sido positiva. “Tivemos uma boa adesão. Há um interesse na participação, tanto pela oportunidade de leitura, que pode gerar vários debates, como também pela possibilidade de remição da pena. Quanto aos efeitos práticos, de quando retornarem à vida em liberdade, é preciso de tempo para mensurar.”

Sobre as primeiras resenhas já entregues, Braida diz que ele e o grupo de avaliadores debateram, entre outras questões, a existência de uma linguagem mais sofisticada ou uma dificuldade na escrita. “Conseguimos encontrar avaliações que tinham uma boa redação, até porque quem já está participando veio de uma pré-seleção de quem teria maior capacidade de leitura e escrita. Vemos que alguns têm dificuldades, mas foi possível encontrar boas avaliações”, analisa.

Ricardo Braida destaca o pensamento de um dos grandes críticos literários brasileiros, Antonio Candido, que declarou que o acesso à arte é um direito fundamental de todos. “Ele dizia que todas as civilizações sempre tiveram algum nível de ficcionalidade, seja por meio da oralidade, literatura escrita etc, portanto constitui um elemento essencial para nossa construção enquanto sujeitos dentro do mundo em que vivemos. É preciso dar acesso a esse direito a todas as pessoas, não importa se estão presas”, defende.

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A partir desse princípio, ele argumenta, ainda, que o acesso à arte – no caso, a literatura – permite a criação do sentimento de empatia e a ampliação da visão de mundo. “Quem se dedica a ler tem a oportunidade de ter contato com outras realidades. Quando se entrega um livro e o leitor mergulha nesse livro, ele passa a ter um contato intenso com os personagens. Acreditamos que possa ter um efeito além do entretenimento.”

Mão dupla
O professor acredita que essa iniciativa pode ser uma via de mão dupla, mudando a visão também de quem não está atrás das grades. “Essa proposta das oficinas também pode gerar empatia com a população carcerária. Existem pessoas que compactuam com essa ideia do ‘bandido bom é bandido morto’, mas muitos não concordam com essa visão e contribuem com o projeto. Talvez quando diminuir esse senso comum do pensamento punitivo que há em algumas pessoas, elas tenham essa empatia de doar bons livros também.”

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