Vivíssima como a poesia


Por Bárbara Riolino

29/10/2014 às 07h00- Atualizada 29/10/2014 às 09h02

elisaA palavra, falada e escrita, revela Elisa Lucinda. A palavra, nos livros ou na boca. “O escritor é confessional. O que ele escreve é autobiográfico, até por negação. No caso da poesia, isso é escancarado. Daí a dificuldade de muitos atores em falar poesia, porque é o seu que está na reta. Quando escolhe um poema é porque quis fazer das palavras do outro as suas. E esta é uma das funções da poesia: dar voz ao mundo. Minha poesia é cheia do que vivo”, diz a atriz, escritora e cantora, com sua voz rouca, rascante, em entrevista por telefone à Tribuna. Convidada do projeto “Sesc literatura: grandes escritores”, Elisa se encontra com o público nesta quarta, às 20h, no Cine-Theatro Central, e fala sobre sua relação de deleite com as palavras.

“Tomei um banho antes de falar com você e cantei duas músicas tão bonitas que até pensei em colocar no repertório. Canto no banheiro, e está tudo bem. Depois canto num teatro, e as pessoas me pagam. Meu pão vem de coisas que gosto muito de fazer”, aponta ela, descontraída, como leva a vida. “Sou uma pessoa concomitante. Enquanto estou falando com você já costurei uma florzinha, que estou botando no meu vestido”, começa a enumerar. Neste momento, solta o telefone, porque uma vela, próxima a ela, começa a pegar fogo. Com a solução, retorna à ligação e volta a exemplificar: “Sou eu quem decoro minha casa, gosto de cozinhar. Em comum com todas as coisas que faço – cantar, escrever, interpretar, colorir – é o prazer com que faço. Todo o meu trabalho se confunde com meu lazer”, define.

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E o prazer com o qual interpretou Norma na novela “Lado a lado”, de 2012, é o mesmo que a faz subir ao palco para incorporar personagens diversos em “Parem de falar mal da rotina”, espetáculo no qual discute com humor e poesia (sempre ela!) o cotidiano. A palavra, que a coloca na tela e no teatro, também a encorajou a abrir um espaço destinado, somente, à poesia. Outro prazer. Fundada em 2010, no Bairro de Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, para onde a capixaba mudou-se aos 27 anos, a Casa Poema oferece cursos, oficinas e saraus acerca da poesia falada. “Não tem a ver com performance, tem a ver com a dramaturgia que existe em cada estrutura poética”, explica Elisa, para logo completar: “Escolhido o poema, vamos estudar um jeito de falar o mais coloquial possível, o mais ‘desviciado’ daquele jeito com aquela musiquinha infame de ‘Batatinha quando nasce’, que acaba com qualquer poema”.

Faro literário

Segundo a escritora, que tem livros infantis, juvenis, poesia e romance no currículo, a Casa Poema é a institucionalização de um método e pensamento, que acredita na força da palavra. “Temos o projeto para a polícia, que chama ‘Palavra de polícia, outras armas’. Fizemos até com a Polícia de Contagem, que na época era considerada mais violenta e precisada dessa abordagem. Temos também outro trabalho que é o ‘Versos de liberdade’, no qual trabalhamos, através da poesia, a questão étnica e principalmente o preconceito dentro do ambiente escolar e com meninos que cumprem medidas socioeducativas (esse só na Bahia)”, pontua, demonstrando o vigor da expressão. “A história, enquanto acontece, é muito difícil de ser classificada, rotulada ou compreendida. Estamos muito perto para ver a história. Algumas vezes farejamos, mas só confirmamos depois. Vejo a poesia vivíssima. Em todos os lugares que vou, tem uma cena poética.”

E a palavra, diz, é resistente. “Existe certa fama da morte da poesia, de tempos em tempos, que é a mesma do samba. E as duas são inócuas, inúteis. Quando é que o samba vai acabar? Nunca. E quando é que a poesia vai acabar? Nunca. Nem com todo o Prozac do mundo”, brinca. “Tudo o que acontece na vida e te amadurece vai direto para o seu poema. A poesia é um olhar. Escrevo todos os dias, porque é um jeito de enxergar. Ontem mesmo, quando estava dormindo na casa de um amigo, em Salvador, acordei com os latidos de um cachorro solitário e havia um conluio de vozes de pássaros. Aquilo me reportou diretamente à minha infância. Acordei com essa sensação e, antes de acabar de pensar em tudo isso, vi que tinha cheiro de poema”, conta (leia o poema em destaque).

Outras Elisas

“Sou uma louca, uma hiperativa sem medicação. Tenho uma produção imensa. Vou publicar, agora, uma coleção que se chama ‘Vozes guardadas’. São três livros em um só, é o que não publiquei nesses sete anos”, diz ela, que acaba de lançar “Fernando Pessoa, o cavaleiro de nada” (Editora Record), biografia romanceada do poeta português. “Ele fez todo um tratado de palavras em sua própria vida. Na vida, ele não pôde ser publicado, tudo o que conhecemos é póstumo. Teve uma vida intensa, aos olhos de quem nem uma flor nem um vento escapavam. Sua poesia era uma poesia que de tudo tratava. E ele ainda inventou vários caras. Tinha uma concomitância”, analisa, destacando seu elo com o autor de muitos heterônimos, entre eles Álvaro de Campos.

“Fiz a autobiografia não autorizada de um cara muito revolucionário, muito inquieto e muito corajoso em seu mergulho, e para quem a palavra foi tudo”, comenta. A obra, escrita em primeira pessoa, já está na segunda edição. “Escrevi ditando, cheio de mesóclise”, ri. “Mais uma vez, fui outra. Sentava e era Fernando Pessoa”, completa ela, que, na palavra, é Elisa Lucinda e sempre muitas outras.

ELISA LUCINDA

Nesta quarta, às 20h

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Cine-Theatro Central

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