Série inspirada no livro ‘Holocausto brasileiro’, de Daniela Arbex, estreia no Canal Brasil

Produção ficcional foi criada e dirigida por André Ristum, inspirada no best-seller da jornalista juiz-forana


Por Júlio Black

29/06/2021 às 07h00

As barbaridades do antigo modelo manicomial brasileiro já foram retratadas em várias reportagens e no devastador livro “Holocausto brasileiro”, da escritora e jornalista Daniela Arbex, que ajuda a resgatar a memória de alguns dos momentos mais sombrios da história do Brasil. E ainda há muito a ser contado: depois de virar documentário lançado pela HBO em 2016, os horrores vividos por milhares de pessoas no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, onde cerca de 60 mil pessoas morreram em decorrência de abandono e maus-tratos, voltam a ganhar as telas na série “Colônia”, lançada na última sexta-feira (25) no Canal Brasil e no serviço de streaming Globoplay com um total de dez episódios.

Criada pelo roteirista e diretor André Ristum, “Colônia” (como também era conhecido o hospital psiquiátrico) é inspirada livremente no livro de Daniela Arbex a partir de inúmeros personagens da vida real que se repetiam ali, onde eram esquecidos aqueles considerados “indesejáveis” pela sociedade da época (e pode-se dizer que por boa parte da atual): jovens grávidas, alcoólatras, negros, homossexuais, prostitutas, vítimas de estupro, o que fazia com que a instituição tivesse até cerca de 70% de seus internos sem qualquer problema psiquiátrico que justificasse a internação.

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Dentre esses arquétipos está a protagonista da história, passada em 1971. Elisa (Fernanda Marques) é filha de um casal de fazendeiros do interior paulista que é despachada num trem até o hospital psiquiátrico para esconder o escândalo de sua gravidez. É no meio do horror do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena que ela conhece outras figuras “indesejadas”, como Wanda (Rejane Faria), que há décadas foi enviada para a Colônia pelo mesmo motivo; Valeska (Andréia Horta), que era amante do prefeito; o alcoólatra Raimundo (Bukassa Kabengele); e o homossexual Gilberto (Arlindo Lopes).

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Retrato de uma sociedade

André Ristum conta que o embrião do projeto se deu em 2014, logo após ler “Holocausto brasileiro”, e que a partir daí passou a pesquisar sobre a história, que segundo ele tem um registro documental rico e extenso, mas que nunca havia ganhado uma versão audiovisual inspirada nos fatos.

“O que me chamou atenção na história, desde o primeiro momento, foi a total desumanização dessa situação, o jeito como essas pessoas eram tratadas, e o que me chocou mais foi saber que cerca de 70% das pessoas não tinham nenhum diagnóstico psiquiátrico”, explica André, que foi até a cidade mineira conhecer o hospital, conversar com pessoas, a fim de ver se seria possível criar uma história ficcional que tivesse a força do livro.

“Poderia apenas retratar um pedaço muito triste da nossa história somente com os relatos desse genocídio que aconteceu lá e em outros hospitais psiquiátricos da época, mas queria contar uma história que mostrasse o horror que era ser tratado nesses lugares, como não havia orientação técnica e profissional para cuidar de quem realmente precisava de cuidados”, prossegue.

Quando entrou em contato com Daniela, a escritora e jornalista já estava com o projeto de documentário em andamento, e os dois começaram a conversar sobre uma adaptação que não fosse apenas uma versão da obra original.

“Trabalhamos com a ideia de uma coisa que fosse ficcional e inspirada no original, pois a ficção precisa de uma criação que vai além do fato”, conta André. “O que mais queria retratar era como essa sociedade conservadora, homofóbica, patriarcal e racista tratava essas pessoas, e através da Elisa, filha de um representante dessa sociedade, uma estranha no ninho, chegamos a esse lugar. É uma forma de aproximar o espectador do nível de violência que acontecia ali, em que as pessoas tinham seus direitos tolhidos ao serem arremessadas nesse lugar.”

Andreia Horta interpreta a protagonista de “Colônia”, uma jovem grávida levada para a instituição mesmo não tendo problemas psiquiátricos Crédito: Divulgação

Arquétipos dos “indesejados”

Daniela Arbex vendeu os direitos de adaptação em 2019 para André, que realizou as gravações em junho e julho do mesmo ano. A parte da fazenda foi gravada nos arredores de Campinas e Jaguariúna (SP), enquanto as cenas do Colônia foram gravadas no bairro do Ipiranga, em São Paulo, numa construção abandonada que já havia abrigado um convento e uma faculdade e que tinha uma arquitetura parecida com a do hospital psiquiátrico de Barbacena – a produção chegou a conversar com o diretor da instituição sobre a possibilidade de gravarem no local, mas ele achou que recriar a história ali, com pacientes que são internos até hoje, não seria bom para eles.

André Ristum escolheu a década de 1970 como o período em que se passa a produção. “Em primeiro lugar, queria trazer essa história para quando ela já não era tão secreta, pois as primeiras fotos e matérias da revista ‘O Cruzeiro’ são da década de 60, já se sabia que havia cinco mil pessoas num lugar em que cabiam apenas 200. Em segundo lugar, me interessava trazer um pouco da mudança do olhar da psiquiatria que acontecia nos anos 70, um conflito que já havia começado e – caso a série tenha mais temporadas – que pretendemos seguir até a mudança radical que houve nos anos 80, com a reforma no sistema manicomial. E, por último, uma associação que me pareceu muito interessante e que teve confirmação histórica há poucas semanas: o uso dessas instituições pela ditadura para fazer desaparecer os opositores. E escolhi o ano de 1971 porque foi quando nasci (risos).”

A série se passa em preto e branco, uma opção do diretor. “Não sei se é por conta dos materiais de referência da época, mas só conseguia enxergar assim. O preto e branco, para mim, tem que ter uma razão de existir, não basta ser bonito; tem que ter função narrativa”, comenta André, que esteve pessoalmente no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena. “Foi uma visita impressionante, pois além de tudo fizeram um trabalho importante de memória com o Museu da Loucura, que mostra tudo que aconteceu na época”, afirma. “Ao mesmo tempo, pude conhecer a forma como eles são cuidados hoje. Foi importante vivenciar isso, conversar – mesmo que brevemente – com alguns dos internos da época, e o diretor do hospital, que nos deu mil explicações do funcionamento. Foi bastante rico todo nosso percurso ali, e tivemos um retorno positivo e agradecido das pessoas, que sentiam a necessidade dessa história ser ainda mais conhecida.”

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História cinza

Autora de “Holocausto brasileiro”, Daniela Arbex deixa clara a felicidade em saber que as histórias narradas por ela no livro podem ser contadas, agora, para um maior número de pessoas, em especial pelo trabalho feito por André Ristum. “O André tem um trabalho consolidado no cinema e que eu conhecia, principalmente por ‘O outro lado do paraíso’. Recebi na época a proposta com alegria por saber da capacidade dele em adaptar essas histórias, ainda mais por não querer apenas reproduzir o que estava no livro, mas colocar sua sensibilidade, seu olhar”, elogia a escritora, que, ao contrário do documentário da HBO, não participou do processo de produção de “Colônia”.

“A preocupação que ficou muito bem pontuada era que a gente precisava manter a integridade e veracidade da história, que já era suficientemente dolorosa e pesada, tinha força própria e não precisava de mais cores. Era uma história cinza, de dias cinzas, duros e difíceis; ficamos ansiosos para ver o resultado final e felizes com o que assistimos. Só confirmou a imagem que tinha dele, que escalou um timaço de atores”, comenta.

Daniela reforça o impacto de ter essa nova perspectiva sobre uma história na qual está mergulhada desde 2009. “Eu sabia que não ia encontrar os personagens do livro, mas eles estão ali através da Wanda, do Raimundo, do Gilberto, da Valeska e da Elisa. Por isso eu digo que o Brasil está todo ali na série, assim como no livro, com todas suas contradições, exclusões e preconceitos.”

 

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