Wilson Cid: O homem que guarda papel e as memórias de uma cidade
Jornalista fala do livro que reúne reportagens, pesquisas e palestras, mas também do amor pelo ofício e a história de Juiz de Fora
O jornalismo tem seus desafios peculiares, e um deles é ter que lidar com o factual quando este não mais pode ser tratado assim. Por exemplo: entrevistar alguém sobre um livro lançado dias antes. Até se pode ter a publicação como tema principal, mas fica aquela sensação de que a “novidade” se perdeu. Aí, a solução é tentar explorar outras facetas do entrevistado, como sua trajetória, a retrospectiva da carreira, projetos atuais e futuros; se a figura for um expoente em determinada área, ou daqueles que conhecem de tudo um pouco, obter declarações e opiniões a respeito do momento político, cultural, a preservação das tartarugas. É preciso, claro, que o entrevistado da ocasião da conversa seja bom de prosa.
Por sorte, o jornalista Wilson Cid, personagem dessa reportagem, é bom de conversa, de prosa, com história para contar, com memória e opinião. E planos para o futuro. A entrevista concedida por ele na última quarta-feira (26) tinha como objetivo principal seu livro “À margem do Paraibuna”, lançado na última semana, e o tema permeou as quase duas horas de entrevista/conversa, mas do livro se partia para lembranças variadas, histórias do passado, pequenos tesouros guardados, os planos futuros e a situação do nosso país, fake news, futuro do jornalismo. Conversa fragmentada, de idas e vindas, mas boa, que por isso mesmo tentará ser reproduzida da melhor forma possível a seguir – talvez tentando captar um pouco do espírito do antigo jornalismo em que, segundo Wilson Cid, o repórter escrevia sem ter de se preocupar com tamanho do texto, número de linhas e caracteres.
O livro
Com capa ilustrada pelo chargista Aroeira, “À margem do Paraibuna” reúne de tudo um pouco na carreira do Wilson Cid jornalista, que passou por jornais como “Diário Mercantil”, “O Globo”, “Panorama”, a Rádio Industrial, e que atualmente faz parte do conselho editorial do “Jornal do Brasil”. E que também é pesquisador e palestrante. São 234 páginas que reúnem reportagens, transcrições de palestras, pesquisas (“É importante compilar tudo que você escreveu”, afirma), crônicas, capítulos com os mais variados temas e muita, muita história sobre Juiz de Fora, terra na qual passou a morar aos 7 anos de idade, quando veio com os pais de sua Três Rios Natal.
“Três pessoas me cobraram esse livro: o (ex-prefeito) Bruno Siqueira, o Omar Peres (atual proprietário do ‘JB’) e o José Alberto Pinho Neves. Comecei a trabalhar nele há cerca de oito meses. Não tem novidades, mas atualizei algumas coisas”, diz, com modéstia. Foi do vasto acervo (“adoro guardar papel, por isso já sabia onde procurar”), que inclui publicações com mais de cem anos e conservadas em embalagens plásticas, documentos, antigos jornais, que ele, entre outras questões, rebate a tese de que Juiz de Fora não tinha um movimento republicano forte, no século XIX, por conta da cidade com a família imperial.
A “capital” do Paraíba do Sul
Wilson Cid fala dos temas retratados no livro não com a preocupação de vender o peixe, mas com gosto de lembrar as histórias que viveu ou pesquisou. A política, claro, sendo um dos tópicos mais presentes. É assim a respeito da tentativa fracassada de se criar o estado do Paraíba do Sul, que teria Juiz de Fora como a capital. Ou ressaltar a importância da presença portuguesa e italiana na cidade, pouco comentada à sombra da chegada do contingente de alemães no século retrasado. “Muito disso fiquei sabendo por conta do Luís Carlos Prestes, que conheceu um político italiano oriundo de Juiz de Fora.” Um capítulo do livro é dedicado ao folclore político, incluindo aí personagens como Belmiro Braga e João Penido. “Belmiro quando não gostava de alguém não tinha pena. Certa vez declamou essa trova contra o João Penido: ‘Penido / Nome solene / Mas pedante como quê / Cheira mal se perde o N / Ou se troca o D por C'”.
Personagens, pessimismo, esquecimento, declínio
O livro não se detém ao folclore dos políticos locais, e também trata de personalidades históricas e nascidas em Juiz de Fora, que além de Itamar Franco como governador teve inúmeros presidentes quando assim eram chamados os responsáveis por governar Minas Gerais. Ou a participação juiz-forana na Revolução de 30. Ou a crítica ao que classifica de “tradição pessimista” da cidade, de achar que “nada vai dar certo”.
“E a história da cidade vai se perdendo, sendo esquecida, por um conjunto de fatores. Juiz de Fora passou pelo declínio da produção de café e não teve a sensibilidade de se aproximar de Belo Horizonte, tê-la como referencial, quando esta passou a ser a capital do estado. Não nos integramos a Minas e fomos perdendo vários referenciais. Deixamos de ser ligação importante com o Nordeste com a implantação da BR-116, perdemos a proximidade com a capital quando esta saiu do Rio de Janeiro para Brasília, relevância com a decadência da malha ferroviária.”
Wilson lembra, ainda, da proximidade que Juiz de Fora teve com algumas das figuras mais poderosas do país. “Dom Pedro II esteve aqui em cinco oportunidades, numa época em que as viagens eram feitas com charretes e eram terríveis. Mais que Juiz de Fora, ele só visitou Petrópolis. O mesmo vale para Getúlio Vargas, que visitou a cidade cinco vezes, numa delas permanecendo por 15 dias. Hoje somos uma cidade de prestação de serviços, e ver a história desaparecendo foi uma das coisas que me incentivaram a pesquisar.”
O sonho do museu
Dentre os projetos atuais de Wilson Cid, e um dos mais antigos, está a criação do Museu da Imprensa e do Rádio, sonho que ele divide com outras personalidades para que a história não desapareça, vire pó. O local, inclusive, já está separado: um pavimento no prédio em que se localiza o Museu do Crédito Real e que recebeu o Memorial Presidente Itamar Franco, atualmente na Rua Benjamin Constant. O que falta é dinheiro para preparar o mobiliário, manter o espaço etc. “Tenho muito material para doar, incluindo três mil fotos e quatro mil negativos”, enumera. “Ainda temos toda a coleção do ‘Diário Mercantil’, entre outros jornais, além de máquinas, documentos, publicações raras como as que costumavam ser patrocinadas por jornais e com assuntos variados. Tenho guardada a máquina de escrever que dividi com o Mário Helênio no ‘Diário’. Muitos velhos jornalistas têm muito material que desejam doar. Apesar da boa vontade da Funalfa, a dificuldade é a disponibilização de recursos. Mas um dia sai.”
Lembranças da profissão
Wilson Cid chegou criança à cidade, em 1947, e dez anos depois, pouco antes de completar 17 anos, o jornalismo entrou na sua vida de forma inesperada para nunca mais sair. “Havia feito o curso de contabilidade e pensava em fazer direito na faculdade, depois estudar línguas. Eu morava no Jardim Glória e estava numa condução quando o senhor Raimundo de Oliveira, que era produtor da Rádio Industrial, sentou-se a meu lado, e começamos a conversar. Ele disse que eu tinha uma ‘voz radiofônica’ e me ofereceu um teste. Comecei a trabalhar na rádio em fevereiro de 1957”, relembra.
“Depois comecei a fazer matérias para o ‘Diário Mercantil’, recebendo por linha escrita, e também discursos de inauguração de lojas, no mesmo esquema, e acabei sendo contratado como repórter de cidades, e depois passei para a política, durante um tempo trabalhando no impresso e no rádio. Mas, se pudesse escolher, teria ficado com a segunda opção.”
Dessa época, lembra como o trabalho era diferente do jornalismo atual. Como geralmente não havia cursos específicos de jornalismo, quem tivesse pendor para as letras muitas vezes entrava para a vida das redações, que antigamente podia se estender até a meia-noite e continuar em conversas em bares e restaurantes que se estendiam pelo meio da madrugada, com a volta para casa numa Avenida Barão do Rio Branco vazia – e segura.
Com garra
“Era uma atividade incessante, trabalhávamos muito. Mesmo depois da chegada da TV, os jornais e rádios tinham muita importância em Juiz de Fora. Poucas unidades dos jornais de fora chegavam aqui, então nós tínhamos que sair da cidade para cobrir, lutar para completar uma ligação, ficar fora por dias. Até porque tínhamos poucos assuntos. Quando se matava alguém, isso repercutia, vendia jornal, era assunto que durava pelo menos um mês. Hoje mata-se quatro por dia, banalizou-se, se não tiver um detalhe marcante passa batido.”
“Mas a profissionalização foi boa para o jornalismo. Antes não havia limite para o texto, não se pagava hora extra, os salários eram muito desiguais entre um jornalista e outro. Era extremamente difícil apurar, repassar as informações, dificuldades técnicas para entregar as matérias, fotos. Por outro lado, havia mais ‘amadorismo’, garra, que é algo típico do amador, não éramos reféns do horário industrial. Era uma época mais romântica, em que se precisava ter ‘faro’ para a notícia, como quando percebemos em 1964 que algo ia acontecer, e houve o golpe militar.
Ainda sobre esse romantismo que rendia a famosa frase “parem as máquinas”, ele lembra de uma história bem ilustrativa. “Quando o Papa João Paulo I morreu (1978), fui informado à noite, liguei para a redação, mobilizei fotógrafo, falei para segurarem o jornal. No outro dias, às 7h30, estávamos nas bancas com a manchete. Quando a princesa Diana morreu, em 1997, aconteceu num sábado à noite e só saiu nos jornais na segunda-feira. Hoje, se isso acontece, vai para a internet e no impresso tem que esperar outra edição. Aí não é mais o factual, é preciso buscar a análise da notícia.”
“O pessoal da imprensa precisa se atentar às mudanças, porque se um muro cai com a chuva na mesma hora está na internet, depois na televisão. No jornal, só no dia seguinte. O pessoal tem que estar preparado não só para dar a notícia, mas analisar o fato. Atualmente faço os editoriais do ‘Jornal do Brasil’ e vejo que as pessoas se interessam por essas análises.”
Fake news e fé no impresso
Com a conversa perto do fim, um assunto que não podia deixar de ser comentado (afinal, a matéria não era apenas sobre o livro) é o momento atual do jornalismo, que vê sua credibilidade abalada pela avalanche de fake news e as campanhas feitas para desacreditar a mídia em geral por interesses diversos. “Tenho a impressão que o pessoal exagera nas fake news, e que por isso mesmo vai perder credibilidade. Você vê no jornal impresso, por exemplo, a responsabilidade (em apurar), o jornal ainda é referência na credibilidade da notícia, mesmo que você discorde dele.”
“Hoje temos as pessoas que acreditam em tudo, ou que acreditam em nada. À medida que forem se familiarizando com os fatos, elas vão passar a questionar as fake news, e creio que elas vão se esvaziar por conta das mentiras que contam. É por isso que tenho fé no jornal gráfico. Não acredito, como dizem muitos, que ele vai morrer. Sempre vai ter alguém querendo ler as notícias no papel.”