Sai o gestor, ficam as marcas


Por Mauro Morais Repórter

28/12/2016 às 07h00- Atualizada 28/12/2016 às 08h27

TONINHO TEM feito sua mudança do imponente prédio no Parque Halfeld e se prepara para o doutorado em educação OLAVO PRAZERES

TONINHO TEM feito sua mudança do imponente prédio no Parque Halfeld e se prepara para o doutorado em educação OLAVO PRAZERES

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Uma pequena caixa ao lado da porta denuncia a mudança. “Já tem mais de um mês que estou levando as coisas”, diz o dono de um material reunido ao longo de oito anos e meio. Alguns objetos, como o porta-retrato com a fotografia do sobrinho, só sairão na sexta-feira. Até lá, a mesa do gabinete de um dos prédios mais populares de Juiz de Fora, no Parque Halfeld, na esquina da Avenida Rio Branco com a Halfeld, continuará cheia de papéis. Mesa, aliás, que acompanhada de cadeiras pomposas em madeira talhada foi poucas vezes usada. Antônio Carlos Siqueira Dutra, o Toninho Dutra, preferia ocupar a mesa de reuniões. O gosto, de certa forma menos formal e aberto a um maior número de gente, define bem a gestão que se iniciou no governo de José Eduardo Araújo, passou por Custódio Mattos e se encerra com o término do primeiro mandato de Bruno Siqueira.

Na caixa que cruzará a porta da Funalfa no próximo dia 30, o gestor graduado em história leva a experiência mais longeva na administração do órgão. “Acho que cresci muito profissionalmente, cacifo meu currículo para outras coisas, me abrem muitas possibilidades”, diz. Sai diferente? “Saio diferente por conta do mundo, por conta do lugar que vi e vivi aqui. A equipe da Funalfa é diferenciada. Recebi muito apoio deles. Uma coisa que aprendi como gestor – tenho 30 anos de serviço público e 25 anos de gestão, porque fui vice-diretor de escola, diretor geral de Caic, chefe de departamento na educação – é formar equipe, respeitando as características das pessoas”, pontua o homem que tem feito marejar diversos olhos da instituição a cada caixa que se forma.

O que não cabe levar, porém, e que Toninho deixa como vigorosa marca é seu peculiar olhar para as margens. “Carrego um orgulho muito grande de ter brigado pelo CEU da Zona Norte, que era uma questão que não foi unânime nos governos que participei. Briguei muito para que ele acontecesse e levo a questão de termos um dos melhores funcionamentos da praça no país, com um projeto que ajudei artesanalmente a fazer. Também carrego a criação do programa Gente em Primeiro Lugar, que tem a marca da cultura para comunidades carentes”, diz. “Carrego também a medalha, que acredito que mereço, pela retomada das obras do Teatro Paschoal Carlos Magno. Tem muito investimento pessoal meu e uma ação cirúrgica do Bruno (Siqueira, prefeito), fundamental que seja dita e sem a qual não teríamos chegado aqui, com o teatro semipronto. Nos próximos meses, a sociedade vai receber esse teatro”, promete ele, negando recentes especulações de que ele se manteria na direção do novo teatro. “Volto para a educação.”

 

Crise e frustrações

Ainda que ao longo dos anos, projetos como o CEU da Zona Norte e o Gente em Primeiro Lugar tenham se mostrado necessários nos contextos social e cultural da cidade, os recentes cortes que afetaram os governos serviram como desestímulo ao gestor que abertamente se posicionou pela comunidade e pelo bem público. “Essa coisa de saber o que tem e precisa ser feito, e não ter condições para tal, começou a me angustiar muito pessoalmente. É preciso que o país encontre caminhos rapidamente para superar essa crise, porque está difícil trabalhar assim para atender as demandas da sociedade. As demandas aumentam, e a arrecadação cai, e a conta não fecha. As pessoas precisam de mais hospitais, melhor qualidade na saúde, escolas de qualidade, e isso tudo custa dinheiro. As pessoas precisam de cultura, de teatros equipados e protegidos pelas leis de segurança do Corpo de Bombeiros, mas para isso precisa de um dinheiro que só reduz”, lamenta ele, referindo-se à recente interdição parcial do CCBM, ação partilhada com o Cine-Theatro Central e outros espaços culturais da cidade que ainda precisam se adaptar às orientações dos Bombeiros.

A fragilidade dos equipamentos locais, inclusive, é uma das frustrações de Toninho quando questionado sobre o que não conseguiu fazer em oito anos e meio. “Queria ter trazido mais recursos externos para a cidade”, responde, para logo emendar em crítica. “Os artistas têm total razão: os equipamentos são de péssima qualidade, são improvisados, não têm luz adequada, não têm som adequado. Não só os nossos, mas os particulares e os da universidade. Não há uma condição bacana para o artista trabalhar, justamente agora que isso (equipamentos) barateou tanto. É preciso trazer recursos e mostrar que cultura é investimento na qualidade de vida”, defende ele, que também se decepciona por não ter alcançado uma integração ideal entre diferentes setores. “Também queria ter feito uma maior integração entre as áreas de comunicação social, esporte, assistência social e cultura, para que a cidade criasse uma grande rede de atendimento, primeiro nos bairros de menor poder aquisitivo e depois amplamente. Isso é absolutamente necessário para que a gente pense mais em pessoas, em humanidade.”

 

A complexidade da memória

O mesmo gestor que se preocupou em introduzir atividades culturais em bairros distantes do Centro e com altos índices de violência também fez-se generoso com assuntos ligados à memória da cidade. Não à toa, em 2010, Toninho Dutra organizou “De todos os cheiros e sabores que fizeram Juiz de Fora” e, este ano, “Outras memórias possíveis”, ambos sobre as origens étnicas da cidade, além dos calendários, já tradicionais, que retrataram o assunto em diferentes aspectos. “Tomei tanto gosto pela coisa. Trouxe isso para a vida prática. Trouxe a questão do patrimônio para a vida das pessoas”, comenta ele, que discute “Outras memórias possíveis” no projeto de doutorado que inicia em 2017, na Faculdade de Educação da UFJF.

“A Funalfa não é uma autarquia simples, porque mexe com questões pequenas mas também com outras extremamente complexas, como os processos de tombamentos, com os quais lidamos todos os dias. A questão do patrimônio é um grande tema na Funalfa, que envolve grande parte de sua energia e de seu tempo”, aponta ele, que descobriu ser presidente do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (Comppac) após assumir a pasta. Estudou para não passar vergonha e continua a investigar uma área sobre a qual defende maiores discussões na cidade.

“Se minha casa é um elemento de interesse público, embora eu continue tendo a propriedade dessa casa, ela passa a ser um pouco de todos, e, sendo assim, temos que melhorar as questões de incentivo. Deixamos encaminhados para a Câmara votar um rearranjo da lei de transferência de potencial construtivo, para que entre em prática e vire um atrativo para os donos de imóveis tombados”, conta. Polêmica semelhante, ao carnaval Toninho também deixa pistas para uma discutível solução. Segundo ele, a área também carece de um amplo debate público, que discuta, inclusive, o uso das quadras de escolas de samba, em sua maioria cedidas pela Prefeitura.

CEU da Zona Norte é, para Toninho, uma de suas boas conquistas (Foto: MARCELO RIBEIRO)

 

 

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‘Gosto do carnaval’

Apontado por alguns como o inimigo dos desfiles de escolas de samba, Toninho Dutra nega. “Gosto do carnaval e acho que ele é necessário, uma festa popular que precisa ser resgatada em todos os sentidos. Carnaval não é a festa do povo? As pessoas fazendo suas festas? Fantasiando-se de outros seres para viver outros momentos? Nas escolas (de Juiz de Fora) não têm as comunidades, não têm renovação no quadro de dirigentes, no conjunto de pessoas que trabalham. A questão hoje fica como se fosse só a falta de incentivo financeiro da Prefeitura, e está longe de ser isso. Se essa festa tivesse a pujança e a força que dizem que tem, ela aconteceria sem a Prefeitura, seria forte”, pontua.

Os dois carnavais, de bloco e de escolas, para ele, são importantes, mas o dos desfiles não valem quanto pesam. “É muito caro para o serviço público. É muito caro para uma cidade que tem um orçamento para investir na cultura, de fato, R$ 5 milhões e deve gastar R$ 2,5 milhões com o carnaval. Gastar R$ 2,5 milhões em três dias e outros R$ 2,5 milhões nos 362 dias restantes é perverso. Esse equilíbrio precisa ser discutido”, sugere ele, que viu a crise bater à porta e tentou diferentes dribles. Diminui aqui para aumentar ali. Aumentou aqui para reduzir ali. No fim das contas, defende ele, foi feito o que deveria, o que cabia, o que era possível.

“Esse ano chegou a ser cogitado não ter a Lei Municipal de Incentivo à Cultura. Sei que para muitas pessoas que não entendem a equação do dinheiro e da arrecadação, parece absurdo que a Prefeitura reduza o valor da Lei, mas quem acompanha o girar do mundo vê que é um luxo essa manutenção, comparando à realidade de outras cidades e estados”, comenta. “Foram R$ 750 mil, mas não deixamos de ter a edição, como em governos passados. Em momentos difíceis, de crise, acho temeroso interromper um programa como esse, porque alguém pode dizer que se passou um ano e ninguém morreu sem a Lei Murilo Mendes. Ninguém vai morrer sem a Lei, mas, muito provavelmente muitas pessoas vivam melhor com a Lei Murilo Mendes.”

 

‘Tenho autocrítica’

Se fosse prefeito… “não sei o que faria entre deixar de faltar remédio nos postos de saúde, deixar de faltar dinheiro para merenda escolar ou fazer uma Lei Murilo Mendes, calendários, festivais”, afirma Toninho, cujo discurso, em oito anos, tornou-se mais arrojado e complexo. “A cultura, que não é tratada como um serviço público essencial, é complementar à saúde, à educação, à assistência social, dá qualidade de vida ao cidadão e pujança e pioneirismo para a cidade. Cada vez estou mais convencido de que a cultura é o caminho de humanização das pessoas para que consigamos ver um mundo com mais respeito, mais solidariedade, menos agressão, menos revólver puxado”, defende.

Além de aprender a dormir com problemas, na certeza de que as manhãs contribuem para resoluções, Toninho também aprendeu a gerenciar críticas. “Apesar dos pesares, tenho o respeito de grande parte da classe artística pelo diálogo”, comemora. “Me importa muito a opinião do outro, sempre. Não tenho mágoas em relação às críticas. Sempre trabalhei com a ideia de que estou numa posição de ser avaliado 24 horas por dia pela população, porque presto um serviço a ela.”

Com os cabelos mais grisalhos do que quando assumiu a Funalfa, o homem que pouco a pouco foi arrumando sua caixa de despedida, a qual não enxerga com tristezas, mas com uma serenidade invejável, sabe que renovação é dos termos mais nobres, inclusive no bem público. “Hoje compreendo que o cargo precisa ser oxigenado, ser alimentado com novas ideias, novas paixões, novo entusiasmo, porque o tempo gera uma acomodação. Consegui caminhar bem com algumas questões, colaborei. E não consegui com outras. Tenho autocrítica”, diz. Natural. Como tem sido a transição. As “novas ideias, novas paixões, novo entusiasmo” ganham o nome, a partir do dia 1º de janeiro, de Rômulo Veiga, que assume a pasta. “Ponho muita fé nele. É um cara competente, inteligente. E experiência eu também não tinha quando cheguei aqui. Aposto minhas fichas em que ele vai ser um bom gestor”, diz Toninho numa generosidade que é sua e é marca na cidade.

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