‘Não vamos perder a energia’, diz cineasta Paula Gaitán, homenageada em Tiradentes
Homenageada da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, cineasta Paula Gaitán tem produção revisada e, em entrevista, fala sobre a carreira, a saudade de Glauber Rocha, com quem foi casada, do cinema atual e aposta na juventude cheia de ideias na cabeça
Testemunho dos últimos momentos de Glauber Rocha, “Diário de Sintra” é também um registro da vida no exílio e uma discussão complexa sobre a formação da memória. No documentário lançado em 2008, a diretora Paula Gaitán testemunha os próprios afetos ao direcionar sua câmera para o marido e sua rotina na portuguesa Sintra. Interessava a Paula e interessava ao cinema aquelas imagens tão cheias de sentimento. O mesmo movimento repete-se na dezena de produções da cineasta, cujo último trabalho é “Ostinato”, no qual investiga a criação do músico paulista Arrigo Barnabé.
No ano em que a morte do marido completa quatro décadas, Paula é a homenageada da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que acontece em suporte digital até sábado (30). No festival, a cineasta tem sua carreira revisitada e sete de seus filmes exibidos (em mostratiradentes.com.br), além de um videoclipe feito para “Mulher do fim do mundo”, de Elza Soares. “Ela não se repete, não por vaidade, mas sim porque o imperativo da arte é um trabalho contínuo e renovado em busca daquilo que ainda não tem nome e nem palavra para definir”, apontam os curadores da mostra Francis Vogner dos Reis e Lila Foster, comparando Paula a Mallarmé, Borges, Coltrane e Lygia Pape.
Mãe do também cineasta Eryk Rocha, e da cantora Ava Rocha, ambos com Glauber, nasceu na França, onde permaneceu por pouco tempo, e cresceu na Colômbia, formando-se em artes visuais e filosofia na capital Bogotá. Parceria de Glauber em seus últimos trabalhos, tornou-se uma diretora interessada nas muitas camadas do cinema, do sons aos detalhes da cena, do conceito à forma, sempre preocupada em fazer um retrato do país a que pertence. E sempre pertenceu. “Sou brasileira. As pessoas falam muito do lugar que nasci em Paris, mas minha mãe é brasileira. Pela Constituição, sou brasileira nata”, orgulha-se.
“Como meu pai era colombiano, cresci uma parte da minha infância e da minha adolescência na Colômbia. Mas minha mãe foi quem me deu a nacionalidade. Houve um momento em que decidi morar no Brasil, definitivamente. Depois de casada, com dois filhos, fiz a opção da nacionalidade, e me tornei o que sempre fui”, diz, em entrevista por telefone à Tribuna. “Não sou estrangeira. Sou estrangeira, talvez, porque nós todos somos um pouco estrangeiros.”
Tribuna – Seus filmes trabalham muito com a noção de memória. É dos temas mais importantes em seu trabalho?
Paula Gaitán – A memória abrange muitos espaços da criação, tanto na literatura quanto no cinema. Chamo de memória involuntária, esse conceito daquilo que, de certa maneira, apaga-se. Tem uma parte da memória que é justamente o que se desvanece com o tempo e só permanece sem que tenhamos consciência: quando, de repente, caminhando por uma rua, observamos uma árvore, sentimos o cheiro de uma flor ou ouvimos os sinos de uma igreja. É como no livro do Proust (“Em busca do tempo perdido”), em que ele fala muito disso, fazendo uma série de associações sonoras, da paisagem, de objetos, que constroem essa memória involuntária. Isso no cinema é difícil de traduzir, porque é algo muito subjetivo, mas, ao mesmo tempo, estamos sempre trabalhando com a intuição, com a sensibilidade, com essa percepção da memória que fica mais cristalizada e aquela que é mais lacunar. Por um lado, tem aquilo que se tem quase certeza de que aconteceu, e por outro, tem o mistério que todos carregamos, daquela parte mais etérea, que achamos que vivemos, mas só concretizamos na medida em que temos sinais. A memória é um tema muito amplo e o cinema também é construído pela memória histórica, aquela secular, de onde viemos, da nossa terra, de nossos ancestrais. Essa acho que é a mais importante e não pode ser apagada.
No seu mais recente filme, “Ostinato”, você retrata o Arrigo Barnabé. Existia uma intenção em perseguir as memórias dele?
Acho que dialogamos muito com esse projeto sonoro dele, com a obra dele, como se faz o processo criativo no trabalho dele. Por ele ser um compositor tão importante, e um inventor, o Arrigo transformou a maneira de fazer som no Brasil. Ele fala que vem de uma formação erudita, mas o trabalho dele é muito popular. Ele ficou conhecido com “Clara Crocodilo” (primeiro álbum, de 1980). Ele é da minha geração e essa obra me marcou profundamente. Ele inventou uma nova narrativa musical. Muita gente não sabe que o Arrigo também compôs já duas missas, músicas para cinema e também é ator, trabalhou em muitos filmes dos cineastas paulistas. Ele tem um percurso muito interessante e o filme se aproxima disso, mas como um ensaio. Fazer um filme sobre Arrigo tomaria muito mais tempo. Não é um filme jornalístico, apenas um pequeno recorte.
Seria correto dizer que seus filmes também perseguem uma noção de brasilidade?
O Brasil é um país continental e talvez não tenhamos a noção exata do que é o Brasil, com diversidades muito grandes. Essa curiosidade minha é natural, uma curiosidade que acho que qualquer cineasta busca ao aprofundar em suas escolhas temáticas, tentando aprender. Tenho essa relação com a aprendizagem e tento mergulhar fundo em questões da brasilidade. “Agreste”, que fiz com a Marcélia Cartaxo, filmei todo na Paraíba. É um filme sobre a mulher, sobre a nordestina e foi algo que aprendi com a Marcélia. Depois fiz “Luz nos trópicos” no Mato Grosso. Também filmei em Minas o “Exilados do vulcão”, todo rodado na região de Cataguases, terra do Humberto Mauro, e uma parte em Belo Horizonte. Meu primeiro longa-metragem fiz no Xingu, na Aldeia Kamayurá. Isso foi em 1987 e naquela época era filme em película. Fiquei quase um mês e meio, sem acesso a nada. Não tínhamos nem como revelar o filme. Aos poucos fui me conectando com esses recônditos brasileiros. Quando trabalhamos em cinema, ampliamos muito a percepção dos espaços, da geografia, da história. Um diretor se torna meio aprendiz e precisa estar com os olhos muito abertos e ouvidos muito atentos, deixando-se conectar com os espaços em que está filmando.
“Quando trabalhamos em cinema, ampliamos muito a percepção dos espaços, da geografia, da história. Um diretor se torna meio aprendiz e precisa estar com os olhos muito abertos e ouvidos muito atentos, deixando-se conectar com os espaços em que está filmando”
Sua vida está muito entrelaçada à do Glauber, cuja morte completa 40 anos em 2021. Quando se recorda dele, o que vem à cabeça imediatamente?
Para mim, Glauber significa generosidade. Ele foi um mestre para mim e para muita gente. Ele abriu novos espaços criativos. Quando trabalhamos com ele em “Idade da terra”, o último filme dele, e tivemos a possibilidade de acompanhar o processo criativo do Glauber, quem esteve junto nessa experiência, como eu, aprendeu na prática o que é cinema no seu sentido maior. Não só fazíamos uma função técnica, mas entendíamos como um grande artista trabalha, fala com a equipe, se relaciona com o espaço. Foi muito importante ter feito esse filme com ele. O legado do Glauber é a honestidade, a generosidade e a coerência. Ele é um dos maiores cineastas da história do cinema. Sendo muito mais jovem, não vivi a experiência do Cinema Novo. Sou de outra geração, 14 anos mais nova que ele. Glauber faz uma falta imensa e não só para mim, para todo mundo.
“O legado do Glauber é a honestidade, a generosidade e a coerência. Ele é um dos maiores cineastas da história do cinema. Glauber faz uma falta imensa e não só para mim, para todo mundo”
O conteúdo continua após o anúncio
Faz o exercício de pensar como ele estaria hoje? O que falaria? O que faria?
Ele seria igualmente coerente. Estaria apoiando o cinema de todos esses novos cineastas brasileiros. Infelizmente agora estamos num momento muito difícil do ponto de vista das políticas públicas e dos editais de fomento, mas existiram conquistas importantes. A terra foi semeada e está nascendo uma juventude cheia de ideias e com muito talento. Tomo como exemplo o cinema indígena e o cinema negro, com tantos autores e diretores novos. Acho que o Glauber estaria apoiando essas pessoas, que estão falando nesse Brasil profundo, com causas identitárias e questões fundamentais. Ele deixou um legado cheio de beleza, energia e de muita inspiração para as novas gerações.
Como você mesma disse, o país já viveu altos e baixos em sua produção cinematográfica e, neste momento, a falta de incentivos públicos e o claro desprestígio do Governo federal em relação ao cinema fazem o Brasil, mais uma vez, viver tempos difíceis. Isso tem interferido na qualidade das produções atuais?
Pelo que estou percebendo, a produção continua ativa, porque já estávamos vindo com editais de anos anteriores. Ainda vamos ter alguns filmes das últimas levas de editais públicos. Também ainda tem editais locais, apoios de alguns estados, mas de fato enfrentamos uma situação complexa. Neste momento de tanta terra arrasada, de tantas dificuldades, nasce uma força, um tecido importante de pessoas que fazem filmes com grande potência criativa e muito pouco recurso, dando um grito. Temos alguns diretores que conseguem superar esse momento nefasto e fazer obras muito impactantes. Acho que há uma mistura. O ano que vem talvez viva uma situação ainda mais complexa. A categoria dos profissionais de cinema, imensa, está sendo muito prejudicada. Temos que perceber que a situação é ainda mais séria do que parece, porque atinge toda a categoria. Mais ou menos todos nós vivemos um momento difícil, podemos fazer um ou outro filme com poucos recursos, mas isso não é normal. A gente se defende, não vamos perder a energia, mas estamos abalados.
“Neste momento de tanta terra arrasada, de tantas dificuldades, nasce uma força, um tecido importante de pessoas que fazem filmes com grande potência criativa e muito pouco recurso, dando um grito”