Os olhos do outro
Americano faz referência àquele nascido ou naturalizado em qualquer canto do continente. De Norte a Sul. Toda subversão ao conceito implica silenciamentos e resulta em hierarquizações irreais. “Temos essa cultura de sempre achar que o melhor está lá em cima, e o que temos (na parte baixa do globo) é horrível. Quase tudo o que temos sobre América Latina e Estados Unidos é comparativo. E normalmente trata-se de uma comparação dizendo o que falta. Estudamos a nossa história, dizendo o que faltou para (o país) ter dado certo, buscando no período colonial pontos que justifiquem ter dado errado. Os Estados Unidos, ao contrário, estudam a história deles mostrando as origens do sucesso. Richard Morse relativiza isso tudo, dizendo que como norte-americano não considera essa história tão bem-sucedida. Logicamente, não há comparação entre a economia norte-americana e a latino-americana. O ‘point’ dele está na questão cultural, em outra riqueza. O fato de um país ter mais dinheiro que o outro não quer dizer que todos os aspectos da cultura e da civilização desse devam servir de modelo para outro país”, explica a pesquisadora Beatriz Helena Domingues, professora da UFJF e organizadora do livro “Cidades e cultura política nas Américas” (Editora UFMG), que reúne seis artigos escritos pelo brasilianista norte-americano Richard M. Morse, com lançamento nesta quarta-feira, às 19h, no Arteria, em Juiz de Fora.
Generoso em seus estudos, Morse reconheceu um Brasil que nem mesmo os viventes foram capazes de enxergar. “Ele diz que o mais lamentável não é que os Estados Unidos façam isto, mas que nós, latino-americanos, introjetemos essa inferioridade cultural em relação aos norte-americanos. Na verdade, aceitamos o código deles, porque eles se chamam de América. Quando fui dar aulas e estudar nos Estados Unidos, falava que pesquisava ‘História da América’, e eles entendiam: ‘Ah! História dos Estados Unidos?!’. Eu respondia que não. Percebe: História da América para nós é tudo menos o Brasil, no Chile também é o restante do continente, em Cuba a mesma coisa. Mas os Estados Unidos se identificam como america nos”, pontua Beatriz, cujo doutorado foi, parcialmente orientado pelo pensador de Nova Jersey que viajou ao Brasil pela primeira vez em 1947.
Influência
“Ele foi meu grande amigo, um pouco pai e mentor. Foi meu padrinho de casamento. Virou uma relação muito próxima, emotivamente e intelectualmente, porque me deu muitos textos para ler. Depois que ele morreu, percebi que, além de ter sido influenciada pelas ideias do Morse, gostaria de transformá-las em meu objeto de estudo. É um clássico que as pessoas não estão estudando. Desde então, comecei a pesquisar o trabalho do Morse”, conta a brasileira, que ao se deparar com as ideias do teórico, em 1991, assistiu a uma palestra sua no Rio de Janeiro. Após um café no dia seguinte da palestra e uma aproximação intelectual, Beatriz foi convidada a ser sua orientanda e, então, partiu com duas filhas para os Estados Unidos.
Do intercâmbio surgiu um interesse genuíno que já resultou no livro “O código Morse”, além de outro, inédito e no prelo, traçando um comparativo entre a história da América e dos Estados Unidos na obra de Morse. Autora de “Tão Longe, tão perto: a Ibero-América e a Europa Ilustrada”, “A reinvenção da roda: A política nuclear no Brasil entre 1964 e 1978” e “Tradição na modernidade e modernidade na tradição: A modernidade ibérica e a revolução copernicana”, Beatriz defende a urgência em tratar as questões levantadas por Morse. Segundo o jornalista e pesquisador Matthew Shirts, também seguidor do pensador, há uma complexidade instigante no trabalho de Morse. “O pensamento de Richard M. Morse costuma provocar desconforto em quem está acostumado com premissas economicistas, positivistas e contratuais, seja do lado que estiver do espectro ideológico”, afirma em prefácio do novo livro.
Alto e lânguido
Publicados em revistas científicas, os seis artigos inéditos em língua portuguesa auxiliam na compreensão do raciocínio de “O espelho de próspero”, livro que causou bastante polêmica em 1988, quando foi lançado no país. “Ele defendia uma ideia contra a corrente dominante, que afirmava que era tudo ruim em nossa herança portuguesa e espanhola, ibérica. O Morse polemizava mostrando que aquela tradição tinha seus méritos, inclusive algumas coisas para ensinar aos Estados Unidos. Ele mandava o próspero, os Estados Unidos, se sentar diante do espelho e aprender um pouco, inclusive com a América Latina, para onde os norte-americanos só prescreviam e prescrevem regras”, aponta Beatriz, acrescentando o peso da prática filosófica no trabalho de seu “mentor”.
“O Morse toma a filosofia escolástica como tema de estudo, porque acha que a dificuldade de compreensão da cultura latino-americana, por parte dos intelectuais, vem do fato de procurarem questões com instrumentos que só servem aos Estados Unidos. Por exemplo: procura-se aqui uma possível influência do liberalismo para dizer que não tem. Mas não tem porque essa é a chave de compreensão norte-americana. John Locke é uma influência importante para os Estados Unidos e não para nós. Morse defende que, para compreender um país é preciso entender seus próprios termos, e não procurar ausências. Em nossa colonização, temos a influência do pensamento tomista (São Tomás de Aquino), que era predominante na Península Ibérica, tanto em Portugal quanto na Espanha, e isso reflete no Brasil e nos países da América colonizados pelos espanhóis”, completa a professora da UFJF.
Em “Cidades e cultura política nas Américas”, para além do pesquisador encantado pelo Brasil e pela América Latina, está o estudioso que, com destreza, manipula outra cultura e outras vivências em todas as suas originalidades. “Morse carregava sua vasta erudição com leveza, em parte, talvez, por entender que a sabedoria mais profunda é algo frágil e para a qual a aprendizagem vinda dos livros oferece apenas, e na melhor das hipóteses, acesso incerto”, defende o pesquisador Thomas M. Cohen, em prefácio do livro.
Tradutora do novo trabalho, Maria Bitarello encarou como desafio não apenas a conversão para o português dos seis grandes textos em inglês, mas, principalmente, a tradução da escrita e do estilo de um autor cuja personalidade ela descreve no texto que encerra a obra. “Morse era bem alto. Alto e lânguido. Ele já era meio velhinho quando nossos caminhos se cruzaram e, no entanto, se deslocava com graça e leveza pelos quatro pisos de sua residência, descendo e subindo escadas, conforme a necessidade, para encontrar aquela citação ou livro que queria compartilhar com amigos. E sabia precisamente onde encontrar o que procurava. Usava óculos, uma dentadura que tirava para comer, tinha mãos e pés muito grandes e uma longa mecha de cabelo ao lado da orelha direita que ele, com muito estilo, usava para cobrir a testa e repousar atrás da orelha esquerda”, conta a jornalista, que, filha de Beatriz, conviveu alguns anos com o pensador de grande generosidade e pouco cabelo. “Ela não conseguia camuflar sua careca e vivia caindo em seu rosto, conforme as horas e garrafas passavam pela mesa.”