Então: é cinema ou não é?
Proximidade da cerimônia do Oscar reacende discussão sobre se filmes de plataformas de streaming podem ser considerados cinema da mesma forma que as produções de Hollywood
Ignorada a eterna discussão sobre a relevância artística do Oscar, a premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood sempre tem suas polêmicas, entre elas a representação feminina nos prêmios principais, assim como a dos artistas negros. Mais recente, a questão do “streaming também é cinema?” passou a ganhar força entre o final de 2018 e o início de 2019, com as dez indicações de “Roma”, de Alfonso Cuarón, ao Oscar. A produção da Netflix levou três estatuetas, incluindo direção, fotografia e filme estrangeiro, mas para muitos deveria ter arrebatado o prêmio de melhor filme, que ficou com “Green Book: O guia”, decisão criticada por vários motivos – relevância e a forma como os protagonistas foram retratados estão entre eles.
A discussão, como era de se esperar, voltou a esquentar a partir do último dia 13, quando a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood anunciou os indicados ao Oscar, que vai revelar seus vencedores em 9 de fevereiro. A lista conta com várias produções da Netflix concorrendo nas mais diversas categorias – algo impensável até poucos anos atrás, quando os grandes estúdios reinavam absolutos.
A verdade é que o streaming chegou para ficar. Netflix e Amazon – via Prime Video – investem pesado em nomes de relevância em Hollywood para suas produções (Martin Scorsese, Adam Driver, os irmãos Coen, Scarlett Joahnsson, Will Smith, Woody Allen, Sandra Bullock, Adam Sandler estão entre eles), apostam em histórias que os grandes estúdios descartam por duvidarem de sua viabilidade comercial, oferecem até mesmo mais liberdade criativa. Resultado: a Netflix viu seu espaço aumentar no Oscar, com as 11 indicações em dez categorias de “O irlandês”, mais as seis de “História de um casamento” e outras três de “Dois papas”, sem esquecer da indicação a melhor documentário com o brasileiro “Democracia em vertigem”.
Dessas produções, “O irlandês” e “História…” concorrem ao prêmio principal, mas encaram adversários de peso como o favorito “1917”, “Era uma vez em… Hollywood” e “Parasita”. Apesar da concorrência, sempre ficará no ar a pergunta: se perderem, será por causa do fator streaming? Ou será apenas por uma questão de “venceu o melhor”? E se um filme de streaming vencer o Oscar, o que isso mudará em Hollywood?
Uma arte em transformação na sua exibição
Sempre vale lembrar que há vários momentos em que o cinema precisou se adaptar ao avanço da tecnologia. Houve o advento da televisão, que passou a transmitir o que antes só se assistia no cinema e depois passou a produzir suas próprias histórias; o videocassete e o DVD player também ofereceram novas formas de se apreciar a sétima arte, assim como a pirataria e os torrents; agora, o streaming é uma nova realidade a ser encarada, e que vem crescendo em relevância de forma rápida.
A primeira produção original da Netflix, “Beasts of no nation”, foi lançada em 2015 e tinha Cary Fukunaga na direção e Idris Elba no elenco, e, apesar das críticas positivas, foi ignorada pelo Oscar no ano seguinte. A questão começou a tomar proporções maiores, com a Academia realizando reuniões entre seus integrantes para decidir se filmes das plataformas de streaming poderiam concorrer ao Oscar caso cumprissem as várias regras (ter mais de 40 minutos, ser exibido durante uma semana em um cinema de Los Angeles com três sessões diárias etc).
Uma das preocupações era que os prêmios da Academia perdessem a pompa e o glamour, e se tornassem algo mundano por conta da distribuição imediata e sem grandes ações de marketing, e até mesmo desconsiderar os distribuidores. Entre 2018 e 2019, um dos maiores críticos da Netflix no Oscar foi ninguém menos que o diretor Steven Spielberg, para quem as produções de streaming deveriam concorrer apenas ao Emmy, o “Oscar” da televisão; entre os argumentos, a necessidade de manter viva “a experiência de assistir ao filme nos cinemas”. A polêmica chegou, inclusive, ao Festival de Cannes.
Preconceito contra o streaming?
Mas os tempos são outros, a Netflix seguiu a investir onde os estúdios não queriam colocar seus dólares, e as indicações e premiações se tornaram realidade. Mas resta a dúvida: ainda existe preconceito por parte da Academia – sem esquecer de festivais de cinema, da indústria, de realizadores – em relação ao streaming?
Para Samuel Santos, blogueiro, youtuber e um dos responsáveis pelo podcast Cabine do Tempo (dedicado a relembrar e resenhar produções clássicas do cinema), existe um preconceito “velado” contra os filmes de streaming. De acordo com ele, o motivo é a popularidade da Netflix e seu impacto na indústria do cinema. “O motivo é justamente a praticidade para assistir a esses filmes, que acabam tendo um público bem maior do que se fossem exibidos no cinema. Com isso, premiar um filme de cinema ao invés de um filme de streaming, na cabeça dos preconceituosos, é incentivar a indústria do cinema”, acredita.
O ator, roteirista e diretor Tairone Vale acredita que ainda exista preconceito, mas que este vem caindo ano a ano – prova disso são as indicações e prêmios recebidos pela Netflix. Ele argumenta que trata-se, no final das contas, de uma adaptação aos novos tempos, ao lembrar que o cinema estabeleceu-se nas grandes salas mas, com o tempo, precisou adaptar-se às salas menores, aos cinemas de shopping centers – fenômeno observado em Juiz de Fora, que viu os cinemas de rua fechando progressivamente, com o Palace sendo o último deles.
“Não sei exatamente o que essa briga com o streaming representa em termo de perdas para a Academia, as associações envolvidas. Mas é um tipo de protecionismo da Academia em que ela mesma começou a ceder, no ano passado tivemos as produções sendo indicadas graças à manobra da Netflix de exibir em salas de cinema. É uma questão de evolução, como a máquina de escrever sendo substituída pelo computador, os táxis pelo Uber; novas necessidades vão sendo formadas. Acho que é uma briga que não tem como o lado conservador ganhar, porque o streaming é uma coisa que veio para ficar.”
Questionada sobre o tema, a escritora e professora de letras da UFJF Ana Paula El-Jaick afirma que é inegável a existência da polêmica. “Basta lembrarmos da briga entre Netflix e (o Festival de) Cannes. Creio que um dos principais motivos para esse ‘preconceito e má vontade’ seja a própria ‘novidade’ do streaming no papel de um ‘estúdio de cinema’ – quero dizer: como novidade, acaba sendo passível de rejeição, aversão. Ao mesmo tempo, podemos pensar o inverso: se houvesse realmente um boicote da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas em relação aos filmes produzidos pela Netflix, certamente eles sequer concorreriam. E, uma vez que concorrem, pode ser que mês que vem vejamos um deles conquistando a estatueta de melhor filme”, analisa.
“Se” ou “quando”?
Essa mudança na relação da Academia com os serviços de streaming já se refletiu nas indicações e prêmios para “Roma”, e a pergunta quanto a um Oscar de melhor filme mudou do “se” para “quando”: daqui a duas semanas, um ano, cinco ou dez? “Pode ser que no dia 9 de fevereiro os serviços de streaming consigam o prêmio máximo do Oscar, dada a ótima qualidade dos filmes que vêm produzindo”, reforça Ana Paula. “É difícil prever como a indústria do cinema vai se comportar daqui para frente, mas ela ainda é muito poderosa, e há muito dinheiro envolvido nesse grande mercado cinematográfico. Então, imagino que a indústria já esteja se repensando, o que não significa um impedimento de continuar produzindo filmes bastante rentáveis.”
“Este ano existe o risco disso acontecer”, também aposta Tairone. “Talvez a mídia perpetue um pouco desse preconceito, dessa falta de visão de colocar os filmes de streaming no mesmo status dos filmes tradicionais, mas eu sinto, pela visão do público, que isso já está equilibrado, as pessoas aguardam ansiosamente, comentam o lançamento de um filme da Netflix com o mesmo vigor de um lançamento para o cinema. Esse preconceito está por vias de acabar.”
Por conta dessa expectativa em relação ao “quando”, Tairone se mostra curioso quanto à reação do circuito exibidor e da indústria cinematográfica. “Eles vão ter que se reinventar de alguma forma para poder sobreviver, brigar com a facilidade de assistir a um filme em casa. Percebemos essas iniciativas muito louváveis de se transmitir grandes obras de teatro, óperas, em salas de cinema. É esperar para ver como o mercado vai reagir diante disso, mas essa briga de tentar bloquear a Netflix, a Amazon numa premiação não tem como.”
Samuel Santos também acredita na Netflix levando um Oscar de melhor filme, mas que para isso é necessário trabalho redobrado. “É possível, sim, mas o investimento é muito alto para haver um destaque diferenciado em relação aos concorrentes ‘normais’, tanto que temos o exemplo de ‘O irlandês’, que teve um investimento de mais de US$ 150 milhões para chamar atenção tanto por seus efeitos como pelo elenco estelar. O maior impacto é a questão da escolha no futuro (em torno de dez anos), em que a exclusividade na estreia continuará no cinema, mas com o lançamento nos serviços de streaming acontecendo com poucos dias de diferença”, aposta.
O lado bom do “boom” do streaming
Se a Netflix “chegou chegando” com “Beasts of no nation”, o longa de Cary Fukunaga foi o primeiro de muitos lançados desde então, com resultados desiguais mas com acertos e sucessos (“Dois papas”, “Roma”, “Bird box”) que provocam a reflexão sobre a forma como o investimento do streaming beneficia mercado, diretores, artistas, o público e toda a cadeia necessária para se realizar um longa-metragem.
No caso de Samuel Santos, ele observa essa questão com otimismo. “Tanto a Netflix quanto a Amazon estão dando chance e investindo em roteiros negados até por grandes estúdios de Hollywood, e isso dá oportunidade a todo o mercado de artistas, realizadores. Quem se beneficia é o público, que acaba consumindo produtos de qualidade como ‘The Aeronauts’, no Prime Video, e o ‘Dois papas’, da Netflix, que são filmes ótimos! Mas vejo também que precisa evoluir o filtro dessas produções, em especial a Netflix. São muitos filmes e seriados produzidos, mas numa proporção muito baixa de qualidade. Acho que está faltando alguém para ‘peneirar’ essa mina antes de dar carta branca em suas produções.”
“Eu era uma das pessoas bastante preconceituosas, que via a Netflix com muita má vontade (risos)”, confessa Ana Paula El-Jaick. “Contudo, depois que assisti a filmes como ‘Roma’ e ‘História de um casamento’, ficou difícil ver com maus olhos o que a Netflix tem feito em tão pouco tempo pela sétima arte. A partir do momento que filmes de qualidade vêm sendo produzidos por ela, o público ganha. Artistas e realizadores da área cinematográfica certamente se beneficiam, uma vez que não ficam mais reféns (apenas) dos grandes estúdios.”
A professora e escritora lembra do exemplo de Martin Scorsese, que, em entrevista recente, revelou que nenhum estúdio se mostrou disposto a financiar “O irlandês”. “Só a Netflix teve cacife para fazer o investimento, até porque sabe que seu retorno é certo. Quanto ao mercado, este sempre se beneficia; afinal de contas, por mais que eu quisesse ver o cinema apenas como arte, é ingênuo não sabê-lo como uma mercadoria altamente rentável – e à medida que mais investimentos são feitos neste produto, isso só tende a aquecer e beneficiar o mercado cinematográfico.”
Tairone Vale ajuda a tornar unânime, entre nossos entrevistados, a visão positiva do investimento realizado pelo streaming. Para ele, é benéfico para o mercado ter outros canais de distribuição para absorver a demanda artística, a exemplo do que aconteceu com a chegada dos canais de TV por assinatura. “Isso vale, inclusive, para produções nacionais, com maior diversidade de temas, assuntos, conteúdos de nicho, assim como o YouTube permite que as pessoas produzam conteúdo em seu próprio quarto e se tornem fenômenos com milhões de seguidores. Tudo que a internet permite se junta nesse caldeirão de novas possibilidades de produção que são impossíveis de bloquear, para o bem e para o mal. O próprio YouTube lançando seu canal de streaming, investindo em produções próprias… Quanto mais gente produzindo e mais gente consumindo, o mercado se fortalece como indústria, e acaba sendo positivo”, pontua.
Muito falado, nem tanto divulgado
Por se tratar de um serviço que precisa apenas de uma conexão (boa) de internet para ser consumida – além do cliente pagar a taxa mensal, claro -, a plataforma de streaming tem uma lógica toda particular de divulgação, que muitas vezes pode ser considerada deficiente ou de baixo alcance. Ao contrário dos blockbusters, por exemplo, não se vê propaganda de “História de um casamento” na televisão, então o básico do marketing fica por conta das redes sociais, banners em sites, outras formas de propaganda que não incluem TV e rádio, e – claro – o boca a boca. Trailers em cinema? Provavelmente a concorrência não deixaria.
Dependendo do prisma observado, esse modus operandi pode ser visto como um obstáculo para que o cinema de streaming tenha o mesmo reconhecimento já consolidado pelas produções de tela grande. “Acredito que o marketing desses canais de streaming precisa evoluir tanto em divulgação tradicional (trailer em cinema, rádio e TV) como campanhas no YouTube e podcasts para divulgação dos seus filmes em vários nichos, inclusive para quem não tem hábito de assistir filmes”, diz Samuel.
“Creio que há uma mudança de perspectiva no que podemos considerar como uma divulgação massiva”, contrapõe Ana Paula. “No Rio de Janeiro, por exemplo, tropeça-se em cartazes de ‘O irlandês’. Assim, parece que a relativamente menor divulgação fora das capitais se deva ao próprio alcance da plataforma – que, então, não precisa se autopropagandear. Portanto, a estratégia do serviço de streaming, no que concerne ao marketing, também não precisa seguir os estúdios tradicionais de cinema.”
Essa questão, todavia, pode ser observada pela forma como a própria imprensa encara os lançamentos de streaming. Enquanto o cinema tradicional tem pelo menos uma estreia de quinta-feira destacada por jornais, sites jornalísticos e emissoras de TV toda semana, plataformas como a Netflix e Prime Video conquistam espaço parecido apenas com produções que tenham um astro de Hollywood ou um diretor de grife para alavancar interesse – por outro lado, as séries costumam ser melhor “vendidas”.
A pergunta, então, é a seguinte: passou da hora do jornalismo cultural se preocupar em colocar o streaming na agenda, ou a falha parte dos próprios serviços? Ou ambos têm culpa no cartório? Para Samuel Santos, o foco da imprensa só pode ser mudado com uma parceria mais forte no quesito de marketing para se ter igualdade com o cinema tradicional.
“Muitos formadores de opinião podem alavancar esses lançamentos a níveis de filmes tradicionais! ‘Dois papas’ é um exemplo de filme que merecia esse tratamento. Porém, para a imprensa mudar seus conceitos, é preciso aumentar os lançamentos de filmes de qualidade nos serviços de streaming”, critica. “Quando conseguirem filtrar seus projetos ao ponto de lançar filmes que reflitam suas marcas como sinônimo de qualidade (como a HBO para seriados), acredito que chegarão no mesmo patamar do cinema tradicional.”
“Estamos vivendo uma mudança bastante recente – e, como em toda mudança, pode haver resistências no início, como vimos em Cannes etc. Creio que já estamos revendo nossos conceitos, nossos paradigmas, reconhecendo definitivamente o streaming como produtores de cinema tanto quanto os estúdios cinematográficos ‘tradicionais'”, pondera Ana Paula El-Jaick. “E repito: pode ser que em pouco mais de duas semanas já tenhamos um vencedor do Oscar produzido pela Netflix.”