Celia e Celma falam sobre o álbum ‘Canto com C’

Em passagem por Juiz de Fora, dupla que nasceu em Ubá, pesquisou e gravou os ritmos regionais ouvidos em suas andanças pelo país


Por Júlio Black

25/11/2017 às 07h00

Mais novo trabalho de Celia e Celma é resultado de pesquisas musicas iniciadas na década de 90. (Foto: Fernando Priamo)

Celia e Celma, exceção feita ao nome, são iguais em tudo. Gêmeas idênticas, têm o mesmo sorriso, simpatia, talento e amor pela música brasileira, e com muita disposição para manter viva a tradição da música sertaneja e regional. É o que se pode ouvir em “Canto com C”, mais recente trabalho das irmãs, lançado este ano e sucessor de “Lembrai-vos das procissões e devoções de Minas”, de 2013, dedicado aos cânticos religiosos que cantavam na infância de sua Ubá natal.

As duas aproveitaram o intervalo entre um show e outro dentro do projeto Circuito Cultural Paulista para darem uma fugida até Ubá; com uma providencial parada em Juiz de Fora para ver outros parentes, elas toparam conversar com a Tribuna sobre o álbum, que recebeu quatro pré-indicações para o Grammy Latino, é resultado de cerca de 20 anos de pesquisas musicais, quando as duas cantoras rodaram o país para seus shows e, ao mesmo tempo, registravam os ritmos regionais dos lugares que visitaram.

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“Nossos CDs são resultados dessas pesquisas, muitas delas em campo. Isso significa que eles podem demorar um pouco para serem concretizados, o que não quer dizer que somos lentas, mas sim caprichosas, com cada trabalho tendo o tempo de gestação necessário para que o produto possa nascer”, afirma Celma. “Não entendo essa necessidade de cobrar do artista um disco a cada ano. Esse trabalho, por exemplo, se desdobrou em shows e oficinas que vamos fazer no ano que vem. Daqui a dois, três anos, pensamos no próximo projeto.”

De Norte a Sul, de Leste a Oeste

“Canto com C” é resultado dessas viagens musicais e inclui ritmos como ciranda, catira, chula, coco, congado, chimarrita, chamamé. Tudo com a letra C. “Cada ritmo tem uma história. A maioria delas é fruto de nossa herança cultural vinda de africanos, portugueses e indígenas. Quando fazemos uma oficina, podemos contar para as pessoas, por exemplo, a história da ciranda no Rio de Janeiro, que é muito presente em Paraty, e muitas vezes a pessoa que está ali dançando, curtindo, não conhece sua origem”, desta Celma. “No restante do Brasil, há cirandas que se manifestam de forma diferente”, destaca Celia, acrescentando que cada região é representada por pelo menos um ritmo. No caso da Minas Gerias natal, são dois: o calango e o congado. “Assim as pessoas têm ideia da riqueza cultural de nosso país. No Espírito Santo, por exemplo, o congo tem mais de 80 bandas em atividade e que arrastam uma multidão no dia de Nossa Senhora da Penha, incluindo muitos jovens.”

Celma acrescenta que seria possível gravar mais dois álbuns apenas com as músicas que ficaram de fora do disco, com praticamente todas essas manifestações culturais ainda muito vivas nas suas comunidades de origem. E muito disso se deve, de acordo com Celia, à presença das novas gerações.

“Apesar de os jovens estarem envolvidos com outros estilos de música, percebemos que essa herança passa de pai para filho, chega a ser comovente ver esse esforço para manter a tradição viva. Afinal, quando você não preserva suas riquezas, suas raízes, fica como uma folha solta no vento”.

Resgate e descobertas

Essas pesquisas que vão além da música sertaneja de raiz rendem produtos como os CDs “Ary mineiro”, sobre a obra de Ary Barroso, e “Lembrai-vos das procissões e devoções de Minas”, de 2013, que resgatou cantos sacros populares. “É um trabalho que nos encheu de emoção”, diz Celia. “São cânticos sacros que a igreja não pratica mais e que cantávamos quando crianças na igreja, que nossa mãe cantava antes. Descobrimos uma música chamada ‘Ó Maria concebida sem pecado’, que foi composta pelo Lamartine Babo, um grande compositor de sambas, quando tinha 15 anos e estudava no Colégio São Banto (tradicional colégio católico do Rio de Janeiro).

“No projeto do Ary Barroso, descobrimos em uma biblioteca no Rio, na era pré-internet, ‘Tristeza dos sinos’, que é de 1926. Ele perdeu os pais por causa da tuberculose e teve a mesma doença quando estava noivo, então foi se tratar na casa de um tio em Ubá, num sobrado que existe até hoje e que fica em frente à Igreja de São José, que inspirou a música”, acrescenta, lembrando um daqueles “causos” que merecem ser lembrados. “Quando era menino, ele amarrou os dois sinos da igreja com uma corda até o rabo de um burro que estava amarrado na praça em frente à igreja. Isso foi de madrugada, então toda vez que o burro abanava o rabo os sinos tocavam, na época todo mundo achou que fosse assombração.”

Moças multimidiáticas

Celia e Celma têm uma carreira profissional que chega aos 50 anos em 2018, mas já na infância as duas participavam de novelas infantis na Rádio Educadora de Ubá e também cantando o comercial do refrigerante Abacatinho nos intervalos do programa “Hora do guri”. Anos depois, já adultas, elas trabalharam com artistas como Carlos Imperial, Miéle, Emílio Santiago, Cauby Peixoto e Moacyr Franco, até lançarem o primeiro disco em 1987, seguido por outros trabalhos e projetos como livros, um programa de TV no Canal Rural e participação na novela “Ana Raio e Zé Trovão”, na extinta TV Manchete.

“Não temos a fama de um Roberto Carlos, uma Ivete Sangalo, mas temos um reconhecimento, uma carreira sólida. Nossos discos se desdobram em shows, oficinas, trabalhamos em uma posição confortável, em que temos a liberdade de sair na rua com a cara lavada. E tem muita gente que nos reconhece, e de quem nos tornamos amigas”, diz Célia.

Ao mesmo tempo, elas tratam de renovar o seu público, mantendo os antigos e conseguindo novos fãs. Nessa questão, elas afirmam que a internet é de grande valia. “Nós amamos de paixão o rádio, foi nesse meio que começamos, também gostamos muito da televisão, mas procuramos ficar antenadas nessas novas mídias, como o Facebook. “Tudo muda muito rápido, e procuramos acompanhar essa velocidade”, confirma Célia. “Temos entrado em contato com as rádios que têm espaço cultural de todo o Brasil por meio da internet, mandamos nosso trabalho. A Rádio Gaúcha, no Rio Grande do Sul, é uma que tem tocado nosso disco.”

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Disposição de sobra

E as meninas não param apenas na promoção do CD. Depois dos shows em São Paulo, elas já preparam uma série de apresentações em 2018 para celebrar as cinco décadas de jornada, inicialmente na capital paulista. A ideia é ir para outras partes do país – incluindo Juiz de Fora, onde não se apresentam há bons anos. Além dos shows de promoção de “Canto com C”, Celia e Celma têm as oficinas agendadas e também apresentam o show com os cânticos sacros, feitos em igrejas, o de receitas cantadas, o espetáculo com marchinhas na época de carnaval, e já foram intimadas a voltar com o espetáculo com o repertório de Ary Barroso.

Para o futuro, um dos projetos que podem ser deslanchados é um em homenagem às duplas sertanejas femininas. “Trabalhar com cultura no Brasil é remar contra a maré, porque o apelo pelo ‘popularzão’ é muito forte. Como lutar contra isso? O jeito é fazer sua parte e não esperar que um milhão de pessoas vão te acompanhar. Na hora que deixarmos este mundo, ou que pararmos de trabalhar, teremos deixado nossa contribuição para a música brasileira”, encerra Celia.

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