A experiência de viver um dos maiores antagonistas no palco
Aos 45 anos, próximo de completar 25 de teatro, ator Ricardo Martins, que iniciou sua carreira em Juiz de Fora, interpreta Shakespeare pela primeira vez, no papel de Claudius num elogiado “Hamlet” atual
Pelo poder vale envenenar o irmão, casar-se com a cunhada e matar o sobrinho. Pelo poder, quaisquer esforços convêm, mostram, diariamente, políticos de distintos níveis no país. “Há algo de podre no reino da Dinamarca.” A tragédia, contudo, é outra. Trata-se de Claudius, um dos maiores antagonistas da dramaturgia mundial, presente em “Hamlet”, de William Shakespeare.
Em tempos sombrios, o desafio da interpretação do personagem clássico está, justamente, na transposição dos dramas mais próximos, encontrando a humanidade de uma figura aparentemente apenas obscura. Prestes a comemorar bodas de prata no teatro, o ator Ricardo Martins encara as verdades e as mentiras de Claudius na celebrada montagem de “Hamlet” feita pela Armazém Companhia de Teatro, que comemora 30 anos de existência, 13 deles contando com o gaúcho da pequena Dom Pedrito, que aos 15 mudou-se com a família para Juiz de Fora, de onde partiu em 2004 para integrar o coletivo.
“Não tem como não buscar inspiração nos nossos políticos, mas não mirei em alguém específico. Esse texto sempre foi, é, e sempre será atual. E uma das razões para isso está na questão sobre o que a ânsia pelo poder faz nas pessoas. Mesmo ‘Hamlet’ sendo uma ‘tragédia’, todos os dias a gente tem aberto os jornais e lido coisas iguais ou piores que as que o Claudius faz. Mas ele é humano. E tentei construí-lo o mais multidimensional possível, considerando o amor que ele sente pela rainha e a amizade por Polonius, seu braço direito”, comenta o ator sobre a montagem em cartaz, até 6 de agosto, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Centro do Rio de Janeiro. Em seguida o espetáculo segue para temporada no CCBB da capital mineira em setembro.
Original, a montagem que tem recebido calorosas críticas, guarda o trunfo de atualizar um clássico, demonstrando-o inesgotável. “A rigor, a montagem fornece material para um tratado de teatro, vários debates, belas reflexões. Há muito mais para ver, sentir, lembrar, pensar e levar para o fundo da alma neste espetáculo do que o que flutua em muito do nosso teatro ao redor. E o nome espetáculo precisa ser entendido aqui na sua acepção mais positiva. Trata-se de um espetáculo de teatro de verdade. Total”, define a professora da Escola de Teatro da Unirio e crítica Tania Brandão, em sua página virtual Folias Teatrais, justificando as seis indicações da peça no Prêmio Cesgranrio de Teatro 2017.
“Montar um texto desse é mexer num vespeiro de ansiedades. E a nossa versão vai de encontro aos mais puristas, seja pela pomposidade que se espera de uma montagem assim, seja pelo fato de o personagem-título ser interpretado por uma mulher, passando pelos cortes de personagens e de texto ou pela trilha contemporânea”, pontua Ricardo, dizendo do equilíbrio em corresponder ao texto shakespeariano e também ao histórico de uma companhia comprometida com a escrita do contemporâneo das artes cênicas.
“O que se vê em cena é o resultado de uma busca constante pelo novo. Por mais que a companhia tenha suas ‘marcas’ em cada trabalho, percebo que a vontade é de contrariar expectativas – nossas e do público – e tentar coisas diferentes, ora pela forma, ora pelo conteúdo. E, sobretudo, falar ao momento.”
Múltiplos contatos
Quando Ricardo Martins desembarcou no Festival de Teatro de Curitiba para apresentar “Pela noite”, em 2002, ele falava ao momento. A adaptação do conto de Caio Fernando Abreu, dirigida por Marcos Marinho e interpretada por ele, José Eduardo Arcuri e Vinícius Cristovão, gritava ao momento, com arrojo estético e discursivo. Quando o ator, naquela viagem, conheceu o trabalho da Armazém Companhia de Teatro, encantou-se com um coletivo que bradava ao momento.
Quando estreou, em 2004, “A caminho de casa”, integrando o grupo radicado no Rio de Janeiro, Ricardo falava ainda mais alto ao momento. “Não tenho formação em artes cênicas e fui aprendendo, lapidando essa escolha de vida com as pessoas com quem trabalhei e trabalho. A cada novo encontro, eu renovo meu olhar e percebo o que já tenho e o quão enorme é o que eu ainda não sei. Porque o teatro é isso: inesgotável”, reflete.
“Obviamente, era muito claro para mim o que eu não queria fazer e o tipo de coisa da qual eu não queria ser porta-voz ou veículo. Mas foi sempre assim, existia uma pré-disposição em mim, e as pessoas das quais eu procurava estar perto foram as grandes responsáveis por me agregarem em trabalhos não convencionais. Então eu acho que eu escolhi artistas para estarem na minha vida e não necessariamente projetos”, comenta ele, que se aproximou do teatro sem a pretensão de subir ao palco. Estudante de jornalismo, esperava tornar-se menos tímido. Mas a arte o descobriu. E falou alto.
“O contato direto com o espectador, logo de cara, norteou muito o que eu trilhei em seguida. Os retornos imediatos e sem filtro, a imersão em realidades que eram diversas da minha. Digo sempre que a minha formação foi o Teatro de Rua e obviamente a visão que o Marcos Marinho tinha e tem do teatro como agente transformador e, sobretudo, provocador”, afirma Ricardo, referindo-se ao projeto teatral desenvolvido por Marinho, durante anos, no Sesi. Tempos depois do encontro inicial, em 1992, ator e diretor trocaram de papeis na montagem premiada “Meu dia perfeito”.
“Esse espetáculo surgiu possivelmente de uma das tantas conversas e trocas que tivemos ao longo dos anos. Uma ideia aqui, outra ali. Me recordo que eu tinha lido uma matéria na internet que falava que em Nova York as pessoas estavam criando o hábito de usar as lajes dos edifícios para promover encontros, projetar filmes e tudo o mais. Como uma forma de respirar naquele caos de concreto que é toda metrópole. Comentei isso com o Marinho, e, depois de quase dois anos de processo, estreamos a peça. Trabalhei com ele e o Zé Eduardo Arcuri, minha outra referência na cidade, não poderia ter sido mais feliz nesse trabalho”, comenta Ricardo, que hoje divide-se entre muitas funções – dos bastidores à boca de cena.
Zona de desconforto
O porto, porém, é o Armazém, coletivo que, reconhecido por um repertório atual, escolheu justamente um clássico escrito no início do século XVII para celebrar aniversário. Teatro é zona de desconforto, fala o grupo, a cada nova montagem. “Somos uma família, a convivência é estreita, e muitas vezes o profissional e o pessoal se misturam. Mas é justamente esse desafio de dosar as coisas, de renovar o olhar para o trabalho e para as pessoas que é bacana. É driblar a rotina e se enriquecer nela. E, contrariando o que se pensa, entender que arte é 90% transpiração e o que resta (a gente procura se convencer) é inspiração”, comenta o artista.
“Acho que na maioria das vezes a gente esquece como é transgressor e louco reunir pessoas numa mesma sala onde alguns fingem que são o que não são e outros fingem que acreditam no que veem. Isso sempre me emociona e me renova”, aponta Ricardo, novamente falando de teatro e tangenciando a vida. Na vida política, mesmo, convivem pessoas que “fingem que são o que não são e outros fingem que acreditam no que veem”. “Há algo de podre no reino da Dinamarca.” E, para dizer-se artista, Ricardo confirma isso dia após dia.
“Ser artista no Brasil nunca foi fácil e hoje mais do que nunca é uma guerra diária e muitas vezes inglória. Há um sucateamento generalizado e arbitrário da cultura brasileira e particularmente da carioca com toda a corrupção e roubalheira que é de conhecimento geral”, critica ele, apontando para os muitos Claudius que envenenam as artes, que, por sua vez, como Hamlet, resistem.