Outras ideias com Maria das Graças de Deus
Maria Espera
Era dia 24 quando Maria sentiu as dores do parto. Estava distante de casa quando as contrações se tornaram intensas. Não havia manjedoura, nem José, nem reis magos. Era Maria das Graças de Deus. E estava sozinha naquele 24 de abril de 1981, na Maternidade Terezinha de Jesus. O dia clareava, às 6h30, quando essa Maria descobriu que as crianças nascem pelo ventre. “Lembro que eu estava passando mal no hospital para ganhar minha filha e ficava olhando como o avião iria entrar por uma janelinha. Vinha, vinha, vinha aquela dor na barriga, e eu olhava para a janela. A enfermeira me levou para a sala de parto, e eu só olhava para a janela”, recorda-se a mulher com os olhos rasos d’água.
Era uma menina, e Maria não sabia. Não sabia, sequer, que naquela barriga que crescia, dia após dia, uma vida surgia. “Não sabia que estava grávida. Peguei carona para ir para Bom Jardim com um rapaz, que já era meu conhecido, e eu já tinha ficado com ele”, conta ela, na época com 16 anos. “Meu patrão é que desconfiou que eu estivesse grávida, porque eu era cozinheira e estava enjoada com a comida. Ele perguntou: ‘O que você andou arrumando, Graça?’. Eu disse: ‘Nada não’. Não sabia que o que eu fiz era para engravidar. A gente perguntava para minha mãe como é que a criança nasce, e ela dizia que passava um avião, abria o lençol e jogava o bebê.”
Era sua, a filha, e Maria não pode tê-la. “Quando chegou de noite, levaram os nenéns de todo mundo para mamar. Eu perguntei para a moça: ‘Você trouxe o de todo mundo e não vai trazer o meu?’. Ela falou: ‘O seu você não pode ficar, não. Você não é da Santa Mônica? Você nem sabe o que vai acontecer com você'”, conta, referindo-se à obra social destinada às mães solteiras, localizada em São Mateus, para onde ela foi levada pelos pais, com quatro meses de gestação, afim de que a vizinhança “não falasse demais”.
Era uma vergonha engravidar sem ter se casado, e Maria sentiu na pele o peso da ingenuidade. Era uma despedida, e ela não queria. Ainda no hospital, suplicou para ver seu bebê. “A enfermeira falou que eram só cinco minutos. No dia 25, foi a mesma coisa, às 9h, me deixou ficar só mais cinco minutos”, diz. Levaram a criança mais duas vezes no dia 25 e outras duas no dia 26, por cinco minutos cada encontro. “Voltei para a Santa Mônica sozinha, e a neném ficou.” Menor de idade, não respondia por si mesma.
Era mãe, mas não podia. Desesperada, ela implorou para que o neném fosse para a casa dos pais, vizinhos ou amigos. Não havia condição, justificaram seus pais. Podia ver a filha uma última vez? Nem cinco minutos! “A enfermeira veio com a menina no colo. Não peguei. Ela deu uma abridinha de olho. Quando fechou, eu virei as costas e tive que sair”, lembra-se a mulher, forte como são as Marias.
Sem mesa
Era 10 de maio quando Graça viu a filha pela última vez. Era dia 11, e ela já estava novamente trabalhando, como fazia desde os 7 anos. “Sou de Olaria, pra cima de Lima Duarte. Nasci em novembro de 1964, mas fui registrada em fevereiro de 1965. Comecei a trabalhar muito cedo, em casa de família, muito criança, nunca remunerado. As pessoas pagavam o que queriam”, conta ela, que soube o que é casa quando saiu para trabalhar. O “pai era retireiro e morava de colono”, a mãe, com a saúde frágil, passou muitos anos de sua infância internada em Antônio Carlos. As duas irmãs e Graça cresciam diante da escassez, na mesa e no peito. As coisas melhoraram quando o pai foi empregado na Rede Ferroviária. “A gente mudou de um lugar chamado Pau do Oco para o Centro de Lima Duarte, perto da linha”, lembra ela, que chegou a ter outros seis irmãos (completando dez), com os quais pouco conviveu. “Não fui criada com meus irmãos. A vida em Lima Duarte não foi fácil”, emociona-se a mulher que nunca gostou de se sentar à mesa para comer. “Até hoje, em casa, me afasto para comer”.
Sem rumo
Era trabalhando, de uma casa para outra, de uma cidade para outra, que Graça viu a infância passar. Aos 9 anos, foi para Volta Redonda, para a casa de uma senhora com quem aprendeu a cozinhar e a fazer pequenos trabalhos domésticos. Também viveu em São Paulo e Juiz de Fora, quando veio trabalhar numa casa onde lhe serviam os restos do almoço, e ela, indignada, fugiu para não mais se sujeitar às humilhações. Quando engravidou, com medo dos pais, passou por diferentes casas até que a mãe a procurou e apontou a saída: um abrigo distante de Lima Duarte, que daria jeito com a gravidez e destino para a criança. “Não podia receber visita e só saía para ir ao médico, acompanhada”, recorda-se ela.
Sem festa
Era 8 junho e Graça chorava pela retirada da filha quando um amigo de Lima Duarte lhe sugeriu que procurasse um emprego no Joia Hotel, na Rua São Sebastião. Ela foi e encontrou Osmar, 22 anos mais velho. De patrão, ele se tornou marido. “Logo que o conheci, já contei a história. E ele queria a menina, registrar e tudo”, diz a mãe de Oscar, nascido no dia 27 de outubro de 1982 e de Beatriz, hoje com 22 anos. “Devo muito da minha vida ao Osmar, que está com 74 anos. Se ele tiver que ir embora amanhã ou depois, merecia vê-la também. Ele viveu tudo”, pontua Graça, que hoje trabalha no Hotel Novo Horizonte, na Marechal Deodoro, cujo um dos donos é o marido, que já teve outros dois estabelecimentos do gênero na cidade. Por anos, Graça morou no Joia Hotel e hoje reside numa casa ampla no São Pedro. A todos os vizinhos conta sua história. Aos médicos que vai, aos que conhece rapidamente, a todos que cruzam seu caminho, ela diz da filha que há 35 anos ela espera. Não passa um dia sem que pense na menina, hoje uma mulher. Será que tem uma casa boa? Tem o que comer? Tem agasalho? Graça espera. Em 1990, ela recebeu um telefonema dizendo que a filha havia sido adotada por um médico juiz-forano, a quem ela procurou, mas o homem, grosseiramente, negou. Em outra oportunidade, falaram-lhe que a menina estava em Cotegipe, mas depois de ir à cidade constatou ser um engano. Em 2012, candidatou-se a vereadora com o desejo de que sua imagem fosse amplamente divulgada e alguém dissesse: “Você se parece com uma pessoa que conheço!” Nada. Enquanto vive, Graça espera.