Jardim Botânico da UFJF abre mostra sobre os Maxakali
Exposição reúne fotografias e utensílios sobre o povo indígena com aldeias em Minas Gerais, despertando a reflexão para a importância de retomar os saberes dos povos originários no enfrentamento de um presente cada vez mais catastrófico
Não havia romantismo. Não havia grandes terras, nem muita gente. Sequer havia a embaúba. Para acessar a árvore que lhes oferecem as fibras com as quais tecem diferentes materiais, o povo Maxakali precisa cruzar o território vizinho, que só permite isso uma vez ao ano. O que havia por todo canto era resistência, recorda a pesquisadora Cecília Belindo de Araújo Porto, que passou 15 dias de 2013 na Aldeia Verde, no município mineiro de Ladainha, há cerca de 700km de distância de Juiz de Fora, para a investigação de campo de seu mestrado em arqueologia no Museu Nacional. “Quase não consegui fazer a pesquisa. Para continuar tecendo, eles, às vezes, desfazem panos, sacos.
Quando não conseguem caçar por não ter animal para os rituais, não deixam de fazer os rituais. Eles estão se reinventando, mas é triste. É um impacto ver como eles resistem para manter a tradição. A língua é a maior prova. O tempo todo é a língua Maxakali que falam. São poucas as pessoas que dominam o português, mais os professores, para ter acesso às comunidades envolventes, mas na aldeia não se fala português em momento algum”, conta ela, agente de cultura e lazer do Museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA) da UFJF, para onde legou os registros feitos ao mesmo tempo em que descobria a face cruel invisível para grande parte dos brasileiros. “Sofri o choque da fantasia do que é um povo indígena, aquele imaginário foi desconstruído quando estive lá. Fiquei bastante assustada com os desafios que o povo encontra pela falta de acesso a água, rios e cachoeiras. Achamos que vamos ver o povo lidando com a natureza de maneira harmoniosa, mas eles não têm acesso e vivem muitos conflitos com os fazendeiros. Vi a tentativa do povo de lidar com a natureza e a dificuldade pela questão do território. Eles não têm muita terra”, lamenta a autora de algumas das imagens que compõem “Maxakali: A resistência de um povo”, que inaugura neste domingo (24), às 11h, nas galerias Mehtl’on e Tlegapé da casa sede do Jardim Botânico.
“Conhecer a cultura e a história dos povos indígenas, seja através da vivência, da literatura, do audiovisual ou da fotografia é um passo importante para superar os preconceitos que ainda existem na nossa sociedade”, defende Ramon Rafaello, fotógrafo, antropólogo e mestrando em estado e sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia, que integrou uma comitiva Pataxó, das aldeias da Jaqueira e de Coroa Vermelha, da baiana Santa Cruz Cabrália, em visita aos Maxacali de Boa Vida, aldeia próxima ao município mineiro de Bertópolis. Era abril deste ano, e Ramon registrou a passagem do pajé Toninho Maxakali para o mundo dos yãmiyxop, “quando deixou o plano físico para tornar-se um ancestral do seu povo”. “Toninho foi um grande interlocutor entre os conhecimentos da sua cultura e o mundo acadêmico, colaborando para decodificar linguagens e significados quase impenetráveis para o contexto dos ãyuhuk (brancos). Conduziu sua trajetória de vida descolonizando saberes e democratizando espaços que até bem pouco tempo atrás permaneceram fechados para a diversidade de saberes dos povos originários”, conta o fotógrafo, referindo-se ao intelectual orgânico que dedicou sua vida à preservação do que era seu, dos outros e dos que estão por vir.
Diferentemente do que diz o nome, a aldeia que Ramon conheceu, a Boa Vida, é marcada por grandes limitações. As casas são feitas de pau a pique, com telhas de cerâmica ou cobertura de palha e capim. Têm, geralmente, apenas um único cômodo, com fogão a lenha no centro e um jirau como dormitório. As roças de frutas e legumes são sufocadas pelo capim plantado pelos brancos. Os frutos e animais reduzem-se pouco a pouco, enquanto ampliam-se as terras dos grileiros. Há fazendas por todos os lados, como pontua Cecília Porto em sua visita à Aldeia Verde. “A história dos Maxakali, a partir do processo de colonização, é marcada por diásporas, expulsões, massacres, epidemias e a degradação e redução dos seus territórios, que vem impossibilitando as práticas da caça, pesca e coleta, dificultando o acesso a água e demais recursos fundamentais para reprodução dos seus modos de vida tradicionais. Porém, apesar de um contexto social marcado por diversas formas de genocídio, o povo Maxakali permanece unido e forte em seu propósito de manter vivo seu idioma nativo, suas práticas e conhecimentos que resistem contra todas as intempéries que foram impostas ao longo do tempo”, lamenta Ramon, encantado com a relação entre espiritualidade e a transmissão de conhecimentos desse povo. “O idioma nativo, os cantos e as demais manifestações da cultura estão profundamente relacionadas ao culto dos yãmiyxop (espíritos ancestrais). Mesmo após séculos de contato com missionários católicos e evangélicos que trabalharam com a evangelização nas aldeias, as relações estabelecidas entre os indígenas e sua religiosidade tradicional permanece muito presente na vida cotidiana, que é mediada pela presença constante dos yãmiyxop.”
‘As ameaças avançaram drasticamente’
Os povos indígenas estão próximos. Há aldeias espalhadas por Minas Gerais. E também estão dentro. Basta reconhecer. “As tradições indígenas e a inteligência indígena está no nosso sangue. Mas a gente nega isso, porque esses povos viveram 500 anos de negação, começando com o genocídio e, aqui na Zona da Mata, numa tentativa de incorporação desses povos, sobretudo dos Puris Coroados, num projeto de desenvolvimento europeu através do aldeamento e da conversão à Igreja Católica. Recentemente, vivem o processo de invisibilidade. Hoje, uma forma triste de vencer a luta desses povos é dizer que eles não existem, o que não é privilégio dos povos indígenas, mas também dos quilombolas, dos povos tradicionais, dos agricultores familiares. Se um indígena usa um telefone, se diz: ‘Não é mais índio!’ A gente permite que todas as culturas do mundo mudem, incorporem novos elementos, mas a gente nega essa propriedade aos povos indígenas. A gente os torna invisíveis. Nas experiências das minhas disciplinas eu pergunto aos meus alunos se eles conhecem povos indígenas em Minas Gerais, e eles não conhecem nada”, analisa o professor do departamento de botânica da UFJF, Gustavo Soldati. “Em Minas Gerais hoje a gente tem 14 ou 15 povos viventes, que falam no mínimo três línguas indígenas. Ninguém conhece. Ninguém sabe qual era o povo originário aqui da Zona da Mata. Esse processos foram tornados invisíveis. Isso está vinculado, sobretudo, à trajetória do povo brasileiro que nega sua própria história. E quando a gente nega, nega o que é fundamental para os povos indígenas: a ancestralidade, o cordão umbilical com os antepassados, a história de vida da família e do povo. E quando a gente nega nossa ancestralidade, nega a nossa raiz e fica mais fraco”, acrescenta Soldati, diretor do Jardim Botânico da UFJF.
“Onde estão os indígenas?”, questiona Cecília Porto, pesquisadora e agente de cultura e lazer do Museu de Arqueologia e Etnologia Americana da UFJF. “Não se fala sobre isso. Há mesmo indígenas urbanos, que estão em Barbacena, em Juiz de Fora, estão estudando e sofrem muito preconceitos por não serem reconhecidos como indígenas. Se eu que estou na área tive que romper com meus imaginários de construção, imagina então quem não está nesses locais de debate. É uma questão que não se fala e da qual não se sabe no Brasil”, reforça ela, chamando atenção para o rico acervo da instituição onde trabalha. Criado há 32 anos a partir da doação da coleção arqueológica e antropológica do professor do departamento de História da UFJF Franz Joseph Hochleitner, o museu possui exposição permanente no Centro de Ciências da UFJF mais um vasto acervo hospedado no terceiro pavimento do prédio de número 3.460 da Avenida Rio Branco, onde fica o Arquivo Central da UFJF. Integram o conjunto objetos pertencentes a grupos indígenas brasileiros, especialmente da etnia Maxakali, reunidos pela professora Nely Ferreira do Nascimento, doados ao museu e, agora, expostos no Jardim Botânico. São utensílios domésticos, peças decorativas e ferramentas para caça e pesca, além de instrumentos religiosos.
Arte e ofício
“Os povos indígenas não diferenciam muito a arte do ofício. Essa divisão entre descanso e trabalho é uma construção da nossa sociedade. Tudo o que eles fazem é na tentativa de buscar a perfeição. Isso reflete uma questão extremamente importante de questionar os caminhos que a sociedade ocidental percorreu. Olhando esses artefatos a gente compreende que os povos indígenas não têm o pensamento cartesiano e antagônico que é construído pela sociedade europeia, de bem e mal, preto e branco, homem e mulher. Essas categorizações dualísticas não existem nos pensamentos indígenas. Olhando esse conjunto, também vemos a capacidade que esses povos desenvolveram baseado no conhecimento e no manejo de uso e aproveitamento da biodiversidade de uma forma completamente diferente da de nossa sociedade. Esses povos otimizam a biodiversidade, diferentemente do que estamos fazendo, acabando com tudo o que está disponível para nós”, aponta Gustavo Soldati, certo da necessária urgência de aproximação com os povos originários. “Sobretudo os povos que vivem na costa brasileira, onde o processo de desenvolvimento europeu é mais antigo e mais árduo, eles estão há no mínimo mais de 500 anos resistindo e re-existindo. São povos que vivem na luta e na resistência. Tem um antropólogo importante no Brasil, o Eduardo Viveiros de Castro, que fala que atualmente vivemos um momento muito propício ao aprendizado com os povos indígenas. Isso porque o mundo para esse povo já acabou, quando chegaram os portugueses aqui declarando guerra, muitas delas santas. Só que eles estão aqui resistindo ainda. E agora, com o avanço do capitalismo sobre a natureza, a nossa sociedade europeia está sendo colocada em xeque. É mais um momento de pensar em como podemos aprender com os povos indígenas.”
Colocadas em perspectivas as fotografias e as peças em exposição e o noticiário, é possível confirmar o que defendem pesquisadores como Soldati: “Estamos num momento gravíssimo, as ameaças avançaram drasticamente”. Onde, contudo, reside a esperança? O que carece ser feito? “Temos que descriminalizá-los, mostrando a importância deles, que são muitos. A questão da demarcação do território é um direito conquistado em 1988. Mais do que demarcar, é preciso ampliar algumas terras, como a dos próprios Maxakali. Sem terra e sem território, não tem cultura, nem conhecimento. Por último, é preciso construir políticas públicas efetivas para que esses povos resgatem a grande maioria de suas estratégias de vida. Hoje temos a Funai, o Ministério da Saúde, mas as políticas não são efetivas para que eles tenham acesso à biodiversidade, à terra boa para o cultivo, à água limpa”, sugere o diretor do Jardim Botânica da UFJF, citando a realidade dos Krenak, que hoje não podem pescar e sequer beber água do Rio Doce após a tragédia provocada pela mineração há quatro anos, quando uma barragem da Samarco em Mariana se rompeu. Segundo Soldati, é preciso “dar visibilidade a esses povos indígenas, mostrando que eles têm nome, têm cara, existem e são felizes, porque o optaram por um outro projeto de desenvolvimento que não é o nosso”.
MAXAKALI: A RESISTÊNCIA DE UM POVO
Abertura neste domingo (24), às 11h, e visitação de terça a sexta, das 8h às 17h, e domingos, das 9h às 17h, nas galerias Mehtl’on e Tlegapé, na casa sede do Jardim Botânico (Rua Coronel Almeida Novais 246 – Bairro Santa Terezinha)
PROGRAMAÇÃO
Novembro
Terça-feira (26)
9h30: Aula aberta “História e linguística Tupi”, com Marco Fietto e Jimmy Correa, professores do Instituto Estadual de Educação, na Sala de Aula do Mato, no Jardim Botânico
Quinta-feira (28)
8h: Ritual de reconhecimento ambiental e roda de conversa com o povo Maxakali, na Sala de Aula do Mato, no Jardim Botânico
13h: “A queda do céu: Poéticas e vivências”, com Profª Silvina Carrizo, da Faculdade de Letras/UFJF, na Sala de Aula do Mato, no Jardim Botânico
Sexta-feira (29)
9h: Oficina de construção indígena, no Jardim Botânico
Sábado (30)
9h: “Mãos de barro: Oficina de confecção cerâmica”, no Bromeliário – Jardim Botânico.
Dezembro
Domingo (1º)
9h: “Tecendo símbolos e significados: O poder da embaúba e das formigas guardiãs”, confecção de tecelagem e roda de conversa com a professora Juliane Lopes, do Departamento de Zoologia da UFJF, coordenadora do MirmecoLab, Gustavo Soldati, do Departamento de Botânica da UFJF e diretor do Jardim Botânico da UFJF e o povo Maxakali, no Jardim Botânico
14h: Roda de conversa “Diálogos interculturais entre os Maxakali e os Kariri-Xocó: lutas e território”, na Sala de Aula do Mato, no Jardim Botânico
Segunda (2)
9h: “Oficina de construção indígena”, no Centro de Ciências (Campus da UFJF)
Sexta (6)
14h: “Oficina de contação de histórias com Alíria Guajajara”, na Sala de Aula do Mato, no Jardim Botânico
Domingo (15)
14h: Performance “Mãe Terra”, com Bianca Leite e Sarau de poesia marginal, na Sala de Aula do Mato, no Jardim Botânico