Ary Rosa e Glenda Nicácio são os homenageados da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes
Dupla mineira, radicada na Bahia, é o exemplo nítido do que é o “cinema mutirão”
Na última sexta-feira (20), um palco estava cheio em Tiradentes. Começava já ali, no primeiro dia, a explicação mais literal do que é o cinema mutirão. Ary Rosa e Glenda Nicácio subiram ao palco para receber as homenagens da 26ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes. Mas eles não foram só: os protocolos de cerimônia foram quebrados e um tanto de gente subiu junto com a dupla de cineastas mineiros, radicados em Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Era tanta gente que foi necessário tempo para fazer todos caberem no enquadramento das tantas fotos. Estavam ali os amores, os amigos, os parceiros, as famílias de Ary e Glenda: aqueles que os ajudam a, diariamente, fazer com que a produtora deles, a Rosza Filme, seja possível.
Quando se anda pelas ruas de Tiradentes, é fácil avistar a dupla. Além dos olhares admirados que são encaminhados a eles durante todo o tempo, para encontrá-los é só procurar por uma turma que entra e abraça e faz questão de estar ali. Eles não andam só. A família de Cachoeira transborda. Exemplo que se trata mesmo de uma família, uma extensão que vai muito além dos planos de filme, é que Moreira, o músico que faz as trilhas sonoras da Rosza Filmes, se juntou com algumas atrizes que fizeram parte dos filmes da dupla para formar uma banda, a Moreira e as Irmãs Sacaninhas. Eles fizeram um show em Tiradentes no domingo (22), e, já na passagem de som, se olhar ao redor, era possível ver todos ali, atentos e felizes, com olhos de admiração, o que se estendeu, é claro, à apresentação à noite.
Novo mundo em Cachoeira
Ary e Glenda, em 2010, se mudaram para Cachoeira em decorrência da aprovação pelo Sistema de Seleção Unificado (Sisu), novidade na época. Eles entraram na faculdade de cinema e, rapidamente, foram virando família. Por estarem em uma cidade pequena, longe das famílias, eles só tinham a eles mesmos. Criar, então, uma produtora, a Rosza, foi intuitivo: eles perceberam que tinha contexto favorável ali: tanto em termos de produção quanto de exibição. Aos poucos, outros nomes foram se juntando. O primeiro filme feito pela dupla foi o aclamado “Café com canela” (2017), logo depois veio “Ilha” (2018), “Até o fim” (2019), “Voltei!” (2020), “Mugunzá” (2022) e “Na rédea curta” (2022) – os dois últimos exibidos nesta edição da Mostra de Tiradentes e os outros em outras mostras, de maneira que todos estrearam no festival.
O que une todas essas produções, de certa forma, é mesmo o cinema mutirão. Eles só existem no coletivo. E, explicitamente, eles declaram: “Nosso cinema é precário”. “Quero mostrar que não tenho dinheiro para fazer um filme”, diz Ary. “E, mesmo assim, quero continuar fazendo”, completa Glenda. Isso fica visível, por exemplo, quando há a escolha em fazer filmes com locação fixa, poucos atores, equipe pequena e gravações noturnas. Ary é quem faz os roteiros dos filmes. Ele ainda conta que eles só são desenvolvidos depois que se sabe qual é o recurso que se tem. “Eu tenho uma história para contar. Mas quanto eu tenho? Isso tem a ver com se eu quero ou não fazer o filme. A gente entendeu que é assim que dá para fazer filme. Existe um gosto por isso, e é acompanhado de pessoas que gostam disso. O cinema mutirão é, sim, por necessidade, mas principalmente por gosto. A gente envolve de uma forma que faz parecer que esse jogo faz sentido.” “E no gosto, tem linguagem”, completa Glenda. “Assumir precariedade como traço e linguagem não por falta nem escassez. Linguagem é uma das coisas que a gente mais gosta de fazer. ‘Mugunzá’, por exemplo, é filme de pandemia sem precisar falar da pandemia.”
Enquanto Ary se define como pessoa atravessada por Minas Gerais e encantado pela Bahia, Glenda brinca que gosta mais de poesia que de cinema. “Fazendo cinema tenho tempo para poesia. E gosto de cinema porque gosto mais de vida.” Essa junção também é aspecto que marca os filmes da dupla. Eles tratam da comunidade: tanto que afirmam que fazem os filmes para Cachoeira. E, de toda forma, os filmes são atravessados pela poesia, sobretudo no olhar de Glenda, que também é diretora de arte, que coloca em cada cena tanto sentir tátil que é como se elas pudessem ser mesmo tocadas.
“A gente gosta é do risco”
Quando se pergunta a eles como é fazer filme juntos, eles nem sabem responder. É tão intuitivo que não dá para colocar em palavras. “A gente aprendeu o cinema juntos. Escolhemos estar juntos porque vemos coisas diferentes e gostamos do que vemos juntos. A gente já morou junto durante um tempo. Então tem isso do cotidiano, da organização da casa às produções. É difícil entender o cinema mutirão porque o cinema é, geralmente, individualista. Com a gente, não”, diz Glenda. “A gente não divide a edição. A gente multiplica. É 100% do olhar da Glenda e outros 100% do meu olhar. É o dobro do prazer”, afirma Ary.
E é também nas mudanças que eles se encontram. Eles partem do não saber para pensar no próximo filme. “A gente gosta é do risco”, afirma Glenda. “Colocar o espectador em um lugar de desconforto. E só o cinema pode fazer isso”, completa. “Mugunzá”, então, pode ser definido por essas frases. O filme, que estreou em Tiradentes, mistura literatura, música, teatro e mais um tanto de coisa para falar sobre território, raça, comunidade, o ser mulher e o ser homem. E vendo o filme fica nítido tudo o que acreditam Ary e Glenda.