Heloisa Buarque de Hollanda: ‘A poesia, ninguém segura mais’
Pesquisadora reedita, 45 anos depois, “26 poetas hoje”, trabalho fundamental para a compreensão da poesia marginal, e lança “As 29 poetas hoje”, no qual reúne diferentes vozes femininas da literatura atual
Heloisa Buarque de Hollanda persegue os ponteiros do relógio. Reconhecidamente uma das principais pesquisadoras do ontem na literatura brasileira, também é voz importante na investigação do hoje. Neste domingo faz regressar às prateleiras “26 poetas hoje” (Companhia das Letras, 280 páginas), antologia lançada há 45 anos, na qual revelava a geração mimeógrafo ou geração marginal, que em plena ditadura militar fazia versos contra o que estava estabelecido. Aos 81 anos, Heloisa assiste o termo marginal alterar seu sentido. Se há meio século marginais eram aqueles que se mantinham contrários ao sistema, marginais, hoje, são os que sequer são visíveis para o sistema. Atenta, a escritora e pesquisadora investiga a nova concepção voltando-se para a periferia que há duas décadas é foco de seu interesse. Professora de teoria crítica da cultura da UFRJ, ela coordena o projeto Universidade das Quebradas, para o qual convida diferentes artistas periféricos para trocas de saberes.
Autora de “Explosão feminista”, de 2018, e de uma coleção sobre o pensamento feminista, Heloisa lança nas próximas semanas “As 29 poetas hoje”, uma seleção da multiplicidade de vozes femininas do agora. Enquanto na antologia anterior, da década de 1970, havia poucas mulheres, a atual é toda preenchida por elas. Outros tempos, garante a estudiosa, nascida em Ribeirão Preto – a mãe é de Leopoldina – e radicada no Rio de Janeiro há mais de meio século. Em “Onde é que eu estou?” (Bazar do Tempo, 240 páginas), Heloisa revisita suas memórias, sua coerência de especialista e sua vivacidade intelectual sempre preocupada em compreender o presente. E o que a interessa, agora? “Sabe que enjoo, né?!”, responde, às gargalhadas, em entrevista por telefone à Tribuna, apontando seu foco na questão cultural evangélica. “Basta ficar um pouquinho na periferia para perceber a importância e o poder das igrejas evangélicas. Ela é um estado, ali. O que é o evangélico? Por que tanta gente procura? Por que é tão importante na periferia? Por que a própria cultura da periferia tem uma dicção meio evangélica?”, questiona.
A margem imediata, portanto, é o que conduz as pesquisas da mulher que recusa o tratamento de “senhora” e prefere o simples “você”. “Antes, marginal era uma coisa de alta e média classe média, com estudantes da Zona Sul do Rio de Janeiro. Hoje perguntei para o Ferréz, que é o Machado de Assis da periferia, porque eles se autonomeiam marginais. Ele me respondeu: ‘Nós somos marginais mesmo, a gente estupra, mata!’. Achei maravilhosa a resposta! É diferente mesmo. Não que estuprem e matem, mas são pessoas com outras realidades, completamente diferentes. E o interesse maior é dar visibilidade a um lado da cidade que o outro lado não conhece. Tem que haver uma articulação entre os lados, senão a cidade explode. A cultura da periferia, essa literatura marginal, é um elo. É uma tentativa de articulação. A cultura aproxima as pessoas, e a violência afasta. É um movimento muito importante, importantérrimo”, afirma a pesquisadora sem pudores. E finaliza: “O século XXI é das mulheres e das periferias”.
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Tribuna: No seu livro “26 poetas hoje” há uma predileção pelo eixo Rio-São Paulo, mas a poesia marginal também estava em outras regiões do Brasil, e você mesma pontua isso. Havia uma unidade na produção nacional?
Heloisa Buarque de Hollanda: Coloquei alguns poetas de São Paulo, mas lá não teve tanto. Peguei um recorte de contracultura, que era muito a marca do Rio de Janeiro. Depois temos Minas, mas cada um tem um perfil. Elas não batem. Aquele tom leve e irônico da poesia marginal carioca não encontramos nos outros lugares. Se chamarmos de poesia marginal a poesia independente feita por jovens naquele momento, temos uma variedade fascinante. Eu deveria ter feito um recorte mais carioca, que respondesse àquele contexto. A poesia marginal é muito carioca, assim como a atual poesia marginal das comunidades é muito paulista. No Rio temos muito menos literatura marginal de favelas do que São Paulo.
Juiz de Fora teve, já nos anos 1980, um movimento com forte influência da poesia marginal. Em que medida esses trabalhos que se referenciam na geração mimeógrafo são uma continuidade do movimento?
O tom que teve no Rio de Janeiro era bem pop, rock’n’roll, o que não vi em outros lugares. Em todos os outros lugares é bem mais político. No Rio ficou como uma coisa universitária e de Zona Sul, muito classe média. Não temos uma diversidade ali dentro, é um grupo mesmo.
Como vê a presença e a leitura de alguns desses poetas hoje, que ganharam grandes antologias em editoras de relevo, como Paulo Leminski, Ana Cristina César, Waly Salomão e, mais recentemente, Cacaso?
Eu só podia mesmo estar lançando a antologia de novo, agora. Ela sai nessa mesma coleção. Quando publiquei o “26 poetas hoje”, tive muita reação. Foi considerado que aquilo não era literatura, que tinha muito palavrão, não gostavam. Tive muitas matérias contrárias e a academia rejeitou muito. Foi uma via crucis. E eventualmente isso virou o cânone. Ana Cristina César, Waly Salomão, Torquato Neto, Cacaso, Leminski e Chico Alvim estão no cânone hoje. É interessante perceber esse caminho.
A que se deve isso?
Essa poesia foi muito nova, apareceu com uma atitude muito contraliterária. Era mais literária até do que queria ser, porque eles diziam “Vamos acabar com a torre de marfim da poesia!”, “A poesia está na rua!”. Eles faziam aqueles livrinhos mimeografados e sempre diziam que era descartável, que quando acabassem de ler era para jogar fora. Era uma atitude contracultural, contrainstitucional. Eles tinham esse perrengue contra a literatura oficial, canônica e institucional. E eram a literatura. Eles fingiam que não eram, mas com o tempo a crítica foi estudando. Ana Cristina passou a ser uma escritora louvada, com muitas teses e ela mesma se agregava ao grupo que dizia isso. Tinha um tom de performance, de ser contra tudo, inclusive a própria literatura, defendendo não entrar no mercado editorial, vendendo de mão em mão para ver a cara do leitor para construir uma relação pessoal. Eram cheios de regras. E sofreram uma reação do que naquele momento era considerado literatura.
“Era uma atitude contracultural, contrainstitucional. Eles tinham esse perrengue contra a literatura oficial, canônica e institucional. E eram a literatura”
É possível dizer que essas antologias hoje mostram como eles interessam ao mercado?
Essas pessoas foram editadas em livrinhos muito esparsos, sem livros concretos, pesados. Quando começaram a ser muito referidos, passaram a ficar famosos, a Companhia das Letras inventou essa coleção para reunir tudo o que era disperso. Chico Alvim, por exemplo, tem livros pela própria editora. Ana Cristina também, mas o conjunto da obra estava perdido. Isso tem a ver com mercado, porque essa coleção vende muito. Antes de a Ana Cristina morrer (em 1983), já havia passado sua obra para a Brasiliense. A atitude contra o mercado foi muito forte, mas muito curta. Logo depois eles começaram a publicar pelas editoras. Aquilo era um momento contracultural e passou rápido.
O Chico Alvim e o Chacal, por exemplo, tomaram caminhos diferentes. Se muitos deles não tivessem morrido, acredita que hoje estariam juntos, em grupo?
Chico Alvim já era um diplomata de carreira e Chacal era um estudante de comunicação que vivia na praia. Havia uma diferença grande e inicial. Acho que a ditadura fez associações que não poderiam se reproduzir hoje. Tudo era uma frente ampla. A poesia que não se queria experimental e era mais política, que não queria a poesia clássica, acaba juntando Chico Alvim e Chacal. Isso se deu em muitas frentes. O cinema independente juntou pessoas de forma impensável, também. Na ditadura tudo era pretexto para juntar contra. Todo mundo era antiditadura. Hoje imagino que seria mais difícil reunir Chico Alvim e Chacal.
“Acho que a ditadura fez associações que não poderiam se reproduzir hoje. Tudo era uma frente ampla”
O que restou da poesia marginal nos dias de hoje, na literatura produzida agora?
Acho que a poesia de slam, principalmente. A poesia de sarau ainda é mais formal, mas os slammers, as apresentações de rua, que tem muito hoje, especialmente nas periferias, poderia ser um equivalente da poesia feita nos anos 1970. Na literatura não-periférica, central, vejo uma poesia jovem que não reza nessa cartilha: ela quer ser publicada.
É correto dizer que a geração mimeógrafo tinha muito mais homens que mulheres? Seu livro “As 29 poetas hoje” é uma resposta a isso?
Tive um susto quando vi aquela onda no Rio, muito presente no nosso cotidiano. Íamos para a praia e tinha a poesia marginal, íamos ao cinema e, na fila, tinha um poeta marginal vendendo seu livreto. Éramos muito interpeladas, açodadas pelos poetas, que estavam em toda parte. Na novela das sete da Globo, o Peró era um poeta marginal. A poesia marginal viveu muito o inconsciente da cidade naquela época. Estávamos vivendo a ditadura e tudo era proibido. A imprensa tinha o censor dentro da sala para não ter o trabalho de censurar depois. Na TV, a mesma coisa. O teatro estava totalmente bloqueado, e o cinema, também. Era um inferno. A poesia corria frouxa, dizia o que queria, porque ninguém prestava atenção. Levei um susto quando vi aquela quantidade de produção cultural num lugar silenciado totalmente. Agora levei outro susto com essa poesia de mulheres, que vai para a rua, volta, vai para a internet, com muitos recursos, muito forte e muito jovem. Experimentei como sendo uma nova poesia marginal essa poesia de mulheres hoje, que é imensa. Foi um inferno chegar a essas 29, porque eram 160 na minha frente.
“Levei um susto quando vi aquela quantidade de produção cultural num lugar silenciado totalmente. Agora levei outro susto com essa poesia de mulheres, que vai para a rua, volta, vai para a internet, com muitos recursos, muito forte e muito jovem”
E você reúne poetas muito distintas.
É uma marca da gente, agora. Tem negras, indígenas, trans. Hoje é diferente. Naquele tempo (1976), eram meninos da Zona Sul do Rio. Aqui tem periféricas. Mudou o mundo. Há uma diversidade nessa segunda antologia que não podia haver na primeira, que tem um negro apenas.
Como vê essa mudança aos 81 anos?
Feliz da vida. Trabalhamos tanto nos anos 1960 e 1970 para mudar o mundo. Demorou, mas mudou. Agora vemos que, mesmo com um governo conservador e repressivo, não voltamos atrás. O movimento das mulheres não vai voltar, nem o racial. A poesia ninguém segura mais. Repare que a poesia foi para o primeiro plano. Ficção foi para o segundo. Nunca isso aconteceu. A poesia sempre foi o primo pobre da literatura. Não vendia, ninguém ouvia, ninguém gostava, só os especialistas. Hoje a poesia está na mesa.