Adaptação de conto de Caio Fernando Abreu estreia nesta quinta em JF
“Não recomendado à sociedade” será encenado no OAndarDeBaixo
Presente no livro “Os dragões não conhecem o paraíso”, de 1988, o conto “Dama da noite”, de Caio Fernando Abreu, mostra uma mulher “madura” relatando a uma possível – e jovem – conquista suas alegrias, tristezas, mas ainda senhora de seu destino. Aparentemente frágil em sua solidão, mas forte o suficiente para saber e ter o que desejar. Sob muitos aspectos, parecida com todo mundo – tanto que, se trocar o gênero da personagem principal por um homem ou qualquer outro dos gêneros que coabitam nossa sociedade, a história manteria o mesmo sentido.
É essa percepção de “poderia ser você ou você ou você” que o diretor Gabriel Bittencourt e o ator Felipe Ribeiro buscam manter em “Não recomendado à sociedade”, monólogo que adapta o texto do escritor gaúcho e estreia temporada nesta quinta-feira (25), com sessões, às 19h e 21h, no espaço OAndarDeBaixo, prosseguindo até domingo nos mesmos horários. A encenação é resultado de cerca de seis meses de trabalho, que incluíram muita leitura, adaptação, pesquisa e ensaios.
Do conto de Caio Fernando Abreu, a dupla mantém a essência: uma figura em um bar, solitária, que coloca para fora suas experiências, medos, frustrações, tristezas, mas também as coisas que fez porque assim podia e queria, o que a faz feliz, sua visão sobre o mundo, a sociedade. A diferença, porém, fica por conta da/do protagonista: Soraya é uma mulher trans que precisa enfrentar todas as dificuldades que sua escolha impõe, o que permite ao texto tratar de temas como transgênero, sexualidade, Aids, preconceito e seus (trágicos) efeitos, religião, rejeição e todo tipo de obstáculos que as minorias enfrentam, seja no universo LGBTQ ou de outros grupos. Num momento marcado por discursos de ódio e ofensas a quem pode ser considerado “diferente” (mesmo que igual em sua essência), é uma proposta à reflexão a respeito do que “não é recomendado à sociedade” – título tirado de uma música do cantor e compositor Caio Prado.
A ideia de adaptar “Dama da noite” partiu de Felipe Ribeiro. Ao trabalhar com Gabriel em outro projeto, decidiu fazer o convite para que ele fizesse a adaptação e dirigisse a peça. “Eu li o texto, do qual já tinha ouvido a respeito, e aceitei o convite. Um dia, durante uma leitura com ele, vieram várias ideias”, relembra Gabriel. “Percebi que poderíamos colocar várias vivências nossas, de outras pessoas, na história. Fui mesclando o texto com essas experiências”. Como na época o diretor estava envolvido com outro projeto da Cia. Santa Corja (da qual faz parte), todo o processo levou cerca de seis meses, sendo que o trabalho mais pesado aconteceu nos últimos quatro meses, com os primeiros ensaios na Casa de Cultura da UFJF e pesquisa, muita pesquisa.
Sem vitimização
Responsável por instigar a criação de uma nova adaptação para o conto, Felipe Ribeiro diz que o que mais chamou sua atenção em “Dama da noite” foi o que ele considera a “potência da personagem” – para que isso fosse enfatizado, uma das características presentes no conto foi mantida: o fato de ela ser uma pessoa que trabalha, tem seu dinheiro, é independente e tem poder sobre seu destino. “Mesmo com todos os problemas, ela nunca se faz de vítima das circunstâncias. Ela estava sempre ali, forte”, diz. “Pode até ser pesado quando a Soraya se lembra do preconceito, da rejeição, mas ela faz questão de ir em frente, mostrar seu outro lado. Nada de ficar gritando sobre sua situação, reclamando o tempo todo, o que poderia apenas manter o preconceito.”
Gabriel, por sua vez, destaca que, durante as leituras iniciais, ele comentou que o conto retratava uma história que poderia ser de qualquer ser humano. “O Felipe achou interessante essa questão, então tive a ideia de fazer dessa personagem uma mulher trans, para dar voz e representatividade a vários grupos – até porque, para mim, ela sempre foi uma mulher trans, mesmo no conto original”, conta.
“Mas o Felipe teve uma sacada interessante: ele não a via como mulher trans, e mais como um ser humano que representasse toda a comunidade LGBTQ. Tanto que ele compôs a personagem com barba, cabelos compridos, muito elegante. Ela deixa de ser uma mulher para se transformar num ser humano que representa todas as pessoas.”
“Essa escolha foi fácil e difícil ao mesmo tempo”, acrescenta Felipe. “Se fosse apenas uma trans teria que pesquisar apenas a respeito desse universo. Ao ampliar, tive essa visão mais ampla, que enriquece, mas também dificulta por ter tantos personagens representados ali. Foi uma barra, porque as histórias dessas pessoas geraram uma empatia muito grande.”
Sob um novo contexto político e social
“Não recomendado à sociedade” estreia justamente num momento em que o discurso do ódio e preconceito tem se tornado frequente não apenas nas redes sociais, mas também no mundo real, com diversos casos de ameaças e agressões contra minorias, resultando até mesmo em assassinatos. Os dois lembram que a peça começou a ser gerada num momento bem diferente dos dias atuais, e que preocupa, sim, tratar de todos esses temas no atual contexto. Mas que jamais pensaram em desistir.
“O medo sempre existe”, reconhece Gabriel. “Eu sou gay assumido, tenho minha vida bem resolvida. Antes havia a questão do medo em casa, agora ele passou para as ruas. Muitos amigos perguntaram se iríamos continuar com a peça, e eu sempre digo que toda essa situação nos deu mais força. Queremos mostrar que somos seres humanos, apesar do risco de sermos confrontados por quem não conhecemos. Mas, ao mesmo tempo, isso me dá mais força para tentar chegar ao maior número de pessoas.”
O diretor ressalta, entretanto, que a proposta do espetáculo não é levantar qualquer tipo de bandeira. “Queremos falar sobre vida, amor, bullying… todos os problemas que sofremos, sejam negros, gordos, mulheres. Optamos por não tratar de política, este assunto nunca foi abordado”, afirma, mas ao mesmo tempo reconhecendo que, agora, é difícil que o tema não esteja associado. “Se o espetáculo fosse apresentado seis meses atrás, seria visto de forma diferente. Como a estreia vai acontecer na semana da eleição, agora terá essa outra visão, principalmente no domingo (28, quando acontece o segundo turno, e serão feitas as últimas apresentações), mas não acrescentamos nada do que aconteceu recentemente. Mas vai influenciar no clima, potencializar algumas situações. O momento fez que o espetáculo ganhasse esse cunho político. O que é bom, pois mesmo não sendo nossa intenção o importante é que as pessoas reflitam.”
Para a dupla, pelo menos, a concepção da peça já produziu resultados a respeito do que são e podem fazer. “No início, eu vi o texto (do Caio Fernando Abreu) de forma natural, mas com o tempo, as pesquisas, os ensaios, isso foi me afetando. Espero que as pessoas saiam do espetáculo com as mesmas perguntas que temos: ‘sou recomendado à sociedade?’ ou ‘que sociedade é essa?'” “O espetáculo me fez perceber o quanto defendo minha classe”, diz Gabriel. “Sinto que estou mais forte, que posso defender (a classe), me posicionar e ajudar as pessoas em geral. Muitos já falaram que assistirão à peça por não se sentirem recomendados à sociedade por diversos motivos, e não só no meio LGBTQ.”
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NÃO RECOMENDADO À SOCIEDADE