Duas vozes em nome de muitas outras

Jaiane e Lavínia, jovens primas rappers, moradoras da Vila Olavo Costa, defendem igualdade valorizando as próprias raízes


Por Mauro Morais

22/10/2017 às 06h10- Atualizada 23/10/2017 às 20h49

Primas estrearam em 2016, cantando nas comemorações da Semana da Consciência Negra, causa que defendem no cotidiano marcado pelas despedidas de parentes e amigos vitimados pela violência. (Foto: Fernando Priamo)

De um lado ficava uma criança. Do outro, mais uma. Uma terceira se colocava diante do elástico, enlaçado nos pés das outras duas, e salta no vão formado pelo fio. Os pulos se alternavam. O elástico subia, descia, cruzava. O suor escorria enquanto uma dança no ar tinha como trilha as vozes infantis de duas primas cujo timbre é outro hoje, na adolescência. Jaiane de Oliveira Brito, de 15 anos, e Lavínia Rufino de Oliveira, 16, cresceram. Trocaram o quintal pela laje. Transformaram as melodias ingênuas por poesia ritmadas e repletas da indignação à qual estão expostas quando se viram obrigadas a saltarem de maneiras distintas numa vida completamente elástica. Ou se adaptam ou se adaptam.

Alunas do nono ano da Escola Estadual Maria Ilydia Resende Andrade, no Bairro Furtado de Menezes, as duas primas moram na Vila Olavo Costa. Convivem diariamente com a criminalidade, que não está apenas nos morros, mas nos preconceitos de canto a canto. Coexistem com a saudade daqueles que se transformaram em números na urbana guerra nossa de cada dia. “A gente convive bastante. Na nossa família mesmo tem gente que já se envolveu e teve final triste. Estamos sempre dando conselhos”, conta Jaiane. Já perderam alguém? “Bastante”, respondem as duas, quase em coro. Alguém próximo? “De grau, assim como eu e ela”, diz Lavínia. E como é para vocês? “É uma coisa que não dá para falar, só sente. É uma falta que faz”, emociona-se a mais velha. “Eles foram jovens com 16, 18 anos. Alguns nem chegaram aos 18. Eram pessoas que víamos todos os dias, conviviam na mesma casa, ou estudavam na mesma escola. É triste”, completa.

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Da experiência cruel, as duas retiram a tal “força estranha”. “A gente sente na pele, tem a necessidade de colocar na letra para se expressar”, comenta Jaiane. “E tentar mudar a situação”, acrescenta Lavínia. “Às vezes, estamos na rua, e os outros já começam a rir, falam do cabelo, falam que somos loucas. É bem difícil. Uma vez, falei para uma colega que estava cantando rap, e ela me chamou de sapatão. O preconceito é muito frequente”, pontua a filha da irmã do pai de Lavínia. Duas jovens vozes, que se inspiram nos paulistanos e populares Emicida, Rael da Rima e Yzalú para fazer brado a dupla a que deram o nome de Vozes do Equilíbrio.

Irmãs da resistência

Quando questionada sobre as perspectivas que gostaria para si, Jaiane fala da mãe. “Fico muito pensativa quando vejo que minha mãe se cansa muito e não rende nada”, lamenta a filha de Elza. “Minha mãe é faxineira e trabalha num restaurante. Meu pai é professor, mas não sei muito dele, porque depois que eu nasci, ele foi embora. Tenho um irmão de 28 anos, uma de 22 e outro, mais novinho, o Samuel, de 3 anos”, conta a menina que aos 2 anos se mudou para a terra do pai, Macapá, onde permaneceu até os 7, quando retornou a Juiz de Fora. Justamente quando estreitou os laços com a contemporânea Lavínia. “Minha mãe também trabalha de faxineira, parou no último emprego semana passada. Meu pai é pedreiro e pega bico. Tenho seis irmãos. Três por parte de mãe e dois por parte de pai, sendo que meu irmão mais novo é filho do mesmo pai e da mesma mãe que eu”, explica a prima mais velha, dona de uma personalidade forte, capaz, até mesmo, de impor pautas na própria sala de aula. “Na escola, falamos bastante sobre o negro. Perguntei ao professor de história quem era Dandara. Ele disse que não sabia e pediu para eu pesquisar mais a fundo e apresentar à sala e para ele”, conta e sorri a mesma Lavínia, que afirma nunca ter tido aulas de música, a despeito da afinação tão exata. A música surgiu naturalmente. “A gente estava um dia na porta do colégio, dando uma volta. Começamos a cantar uma musiquinha. Paramos e fomos inventando na hora. No outro dia, começamos a levar mais a sério. Sentamos, escrevemos, e veio a ideia de virar rap. Todo mundo apoiou”, lembra Jaiane. “Criamos a primeira música sobre política, os últimos acontecimentos e vimos que tudo estava muito elevado. Está tendo racismo demais, machismo demais, violência demais. Decidimos tentar equilibrar com a nossa música, passando mensagens positivas para os jovens da maneira que entendemos”, completa Lavínia. As literais Vozes do Equilíbrio estrearam no palco do CEU das Artes na Zona Norte em novembro do ano passado, no encerramento da Semana da Consciência Negra. Já se apresentaram no Clube de Benfica, na Universidade Federal de Viçosa e até em salão de beleza, com o apoio da Associação Lixarte e do Conselho de Igualdade Racial, do qual fizeram parte no último ano. “A passagem está muito cara. Isso dificulta muito de a gente estar entregando a verdade na mão dos outros”, critica Jaiane.

Mães da valentia

Quando perguntadas sobre o que querem para o futuro, Jaiane e Lavínia falam do lugar onde vivem. “Quero que a comunidade melhore bastante, porque lá em um lugar de lazer”, diz a prima mais nova. “E que quebre o preconceito de todas as partes. Meu sonho é ver todo mundo feliz, convivendo de maneira legal. Acho que é preciso ter mais amor entre as pessoas, independentemente de cor, de religião ou classe social. Se a gente se amar, a si próprio e ao outro, a sociedade vai ser uma maravilha”, completa Lavínia. Mas o que querem ser quando crescerem um pouquinho mais, já que já estão bem grandes?! “Quero continuar trabalhando com música, com arte, de forma com que as pessoas me entendam e sintam o que sinto. Também quero entrar numa faculdade de psicologia. É preciso ter inteligência também, não é só chegar e cantar”, ensina Lavínia. “Na minha família, não teve ninguém que se formou. Meus irmãos todos já trabalham e têm filhos. No bairro mesmo, é raro saber de alguém que se formou. Quero levar esse trunfo para eles”, sugere a jovem. “Meu sonho é continuar cantando, mas também quero fazer a faculdade de jornalismo”, conta a outra, Jaiane, que se diz encorajada a seguir nos versos por “saber que o rap está modificando muitas mentes”, ainda que a mãe resista à ideia da vida musical. “Minha mãe acha que, porque ela teve um caminho difícil, eu deveria focar no estudo. A gente conversa, e quando ela vê que eu estou feliz ela deixa eu sair para evento”, ri a artista, cuja inspiração parte de qualquer momento para o caderno de escola ou para o celular onipresente, de onde saem os beats. “Estamos preparando três poesias para o 1º Slam Poético da escola. Vamos com a cara e a coragem”, diz Lavínia, que sem pudor começa a entoar uma de suas composições, acompanhada pela prima, dançando e saltando. “Eu tô preparada, eu armo minhas raízes contra a sociedade/ mais uma estrela prestes a brilhar nessa cidade.”

Jaiane, de 15 anos, e Lavínia, 16, nasceram e vivem na Vila Olavo Costa, “com muito orgulho!”. (Foto: Fernando Priamo)

Filhas do gueto

comunidade negra percebida e desvalorizada
minha pele é vista como motivo de piada
tatuada até a cara com chicote
eu tô de pé pela injustiça que se move

a vida é bem desse jeito
mas sou humana e tenho um coração
que ainda bate no meu peito
eu exijo todo o respeito

racistas que só vomitam gomas de patifarias
vim do morrão de escola pública
sinto que sou tratada com diferença
por minha pele ser escura

são os meus traços, a minha conduta que não lhe convém
muitas não se contém quando veem
e, apesar de tudo, todos os dias continuo lutando
para me enxergarem como alguém

era por condução?
venderam nossas vidas a preço de feijão
é duro e triste de aceitar
resistente escravidão que quer me chicotear

de lá pra cá,
sem tempo pra acabar viva
a cidade na alma e o desespero no olhar
de quem já viveu de tudo e nunca vai recuar

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eu vivi, senti, presenciei tretas ruins
sem fim, ouvi termos famosos e populares,
que saem de bocas, que não falam, só latem
“os de cor só emitem sacanagem”

espaço na mídia, erraram na vida
sou negra, cabelo duro e sinto que não sou bem-vinda
é murro no sistema, é game-over, beleza-padrão
daqui pra frente vamos impor: quero tom de pele e cabelo na televisão

eu tô preparada, eu armo minhas raízes contra a sociedade
mais uma estrela prestes a brilhar nessa cidade
sou ancestralidade,
eu guerreio por igualdade

tenho convivência com esse tipo de realidade
as revoltas contra os valores de minha identidade
mesmo com tanta discriminação
espero que em meu destino o que chamam de justiça, entre em ação

para os branquinhos,
nós até somos atração
pros gringos que vem de fora,
então só querem meter a mão

estupraram nossos limites
querem costurar as nossas bocas enquanto a gente ainda vive
tropeçaram no respeito e querem pôr disciplina em quem é de raiz
poxa, filha do gueto!

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