Gastrô+ 22-04-2017
Sessentão de dar gosto
Situado em galeria do Centro, Bar do Futrica completa 60 anos mantendo características originais e gerações de fregueses
Como manda a etiqueta tão velada quanto universal dos botequins, o cardápio está exposto pelas paredes de azulejo até a metade, em harmonia com o piso original de ladrilhos que margeia nossa página. Em fichas de acrílico removíveis, o menu do dia: “Prato comercial: arroz, feijão, carne assada, salada, fritas e farofa”. Um pouco abaixo, escrito à mão, o especial de fim de semana: “Feijoada sexta e sábado”. Atrás do balcão, afixadas em cartazes, dividindo espaço com um pôster do brasão do próprio bar (sim!), mais “páginas” das especialidades gastronômicas variadíssimas de todo bom boteco: “Pizza: Fatia R$5,50, Média R$ 44, Grande R$ 66”. Como é de costume, uma iguaria leva o nome da casa, um clássico PF: “Prato Futrica: acém cozido, arroz, feijão, macarrão, e salada”. E assim tem sido pelos 60 anos que um clássico da culinária botequeira e da boemia juiz-forana, o Bar do Futrica, completa no próximo dia 24 de abril
Situado bem no Centrão de Juiz de Fora, na Galeria Hallack, entre as Ruas Marechal Deodoro e Mister Moore, o Bar do Futrica foi fundado em 1957 por Geraldo Vieira, que emprestou seu apelido ao estabelecimento. “Meu pai era muito brincalhão, fazia gozação e pregava peças em todo mundo, mas, com a cara séria, as pessoas sempre caíam (risos). Daí ficou Futrica”, conta Sidney, filho do fundador e que hoje toca o bar ao lado do irmão Ademir, do filho Rondinely e do sobrinho Douglas. “É um bar de família. Em 1970, tinha acabado de passar na faculdade e vim ajudar meu pai por uns três dias, porque íamos começar a funcionar como restaurante também. Nunca mais saí e, com o passar dos anos, vi diferentes gerações vindo aqui, trazendo seus filhos, seus netos. O Futrica é um pedaço da história de muita gente”, diz Sidney.
A trajetória do bar se confunde não apenas com a da vida de muitos fregueses, mas com a história de Juiz de Fora, não à toa tendo se tornado Entidade Benemérita da cidade em 2012. O passar dos anos das portas sanfonadas da galeria se confunde mesmo com a história do país. Quando o golpe militar de 1964 foi instaurado pelo general Olímpio Mourão Filho, aqui em Juiz de Fora, milhares de militares foram às ruas, mas dezenas de homens fardados estavam no Bar do Futrica. E lá continuaram. “Os militares não deixaram ninguém sair daqui, meu pai baixou as portas, e o povo ficou aqui dentro por horas”, conta Sidney, que se lembra também de, ainda menino, jogar bola no corredor da Galeria Hallack, antes sem saída. “De lá para cá, a galeria foi aberta, o comércio se desenvolveu, e a cidade e o mundo mudaram muito. Quando eu era criança, e até adolescente, não era comum ver mulheres aqui no bar. Hoje em dia, elas trazem os maridos ou vêm com amigas ou sozinhas mesmo. Que bom, né?”
No vídeo, Sidney conta um pouco mais dos 60 anos de balcão do Bar do Futrica:
[su_youtube_advanced url=”https://youtu.be/z6NjITMtD_E”]
Da pizza grega ao “prato do vovô”
A pizza grega do Futrica é um dos maiores ícones da gastronomia de boteco de Juiz de Fora e um mistério guardado a sete chaves pelo clã Vieira. Tudo que se sabe é que há uma massa caseira fininha preparada diariamente na cozinha do bar (por isso está sempre fresquinha), uma quantidade obscena de queijo-do-reino derretido e uma combinação de texturas e paladares tão simples quanto viciante. “Foi um grego mesmo que ensinou meu pai a fazer. Hoje tem gente que leva congelada para o Brasil inteiro. Mas o segredo a gente não conta. Eu mesmo não sei fazer, só meu irmão. Mas vou te falar: várias pessoas já sugeriram até que ela tinha que virar patrimônio aqui de Juiz de Fora, viu?”, diz um orgulhoso Sidney, e se o critério for o deleite dos clientes, a gente não discorda.
Na cozinha, Ademir deixa que a gente espie o preparo da pizza grega (confira um trechinho no vídeo!), enquanto vai montando algumas com as cozinheiras Leila e Déia e fala sobre o real segredo do bar sexagenário. “As pessoas não vêm aqui só por causa da pizza. Acho que é porque a gente é muito simples e realmente tem prazer no que faz. É muito bom servir pessoas tão boas e vê-las satisfeitas, acho que é por isso que elas voltam”, diz ele, já cumprimentando a leva de clientes que, por volta das 11h, começa a chegar para o almoço. “Tudo bem, doutor?”
Na mesma cozinha em que Ademir monta o carro-chefe da casa com as meninas, saem clássicos da culinária caseira e de boteco, honrando a fama mineira nos quesitos. Filé à parmegiana, maionese de batatas fresquinha (daquelas que se pode comer na rua sem “medo” e com festa para o paladar), uma farofa espetacular que acompanha diversos dos pratos comerciais, macarronada, espetinhos, e petiscos típicos de botequim, como o inesquecível bolinho de “mandiocalhau” e as iscas de fígado que, sim, têm o poder de convencer até os mais céticos em relação aos miúdos. Apesar de comer todos os dias no bar, Sidney Vieira não esconde que a quarta-feira é seu dia preferido à mesa. “É que o prato do dia é o “prato do vovô”, que no caso sou eu (risos). Tem costelinha, feijão vermelho, arroz, couve e angu. Gosto de tudo, mas, nossa senhora, o prato do vovô é demais.” Somos obrigados a concordar.
Livro, artes plásticas e mesas com “donos”
Como todo bom boteco, o Futrica é cheio dos causos e personagens, muitos deles registrados em uma espécie de livro de assinaturas que Sidney começou a fazer em 2000. Nas páginas, há o nome de gente de todo o país, de estrangeiros, políticos e, entre muitas grafias desconhecidas, uma salta aos olhos por ser completamente familiar, a do pintor Dnar Rocha, que exalta, em sua mensagem, “as delícias do paladar” e “os amigos de dentro do balcão e os de fora”, terminando ao dizer “quero estar sempre presente”. E estará, eternizado nas páginas do caderno de Sidney e nas memórias do bar que tanto frequentou. “O Dnar era amigo, estava sempre aqui. Eu tinha um jogo de perguntas neste caderno, e brincava de fazer brasões para os competidores. Quando ele pediu que eu fizesse o dele foi uma honra.”
Mas a relação do Futrica com as artes plásticas não para em Dnar. Apontando para as paredes do bar, Sidney revela um inusitado e misterioso acervo artístico escondido de um dos grandes nomes locais. “Por baixo desta pintura que está aí hoje, tem três painéis do Heitor de Alencar. Ele pintou quando inauguramos a parte de restaurante, era muito amigo do meu pai. Tem um restaurador que está doido para recuperar isso aí”, diz ele. “Aqui sempre vieram artistas de todo tipo, políticos…prefeitos, vereadores, inclusive eu brinco que quem não vem ao Futrica não se elege. Tem um ex-candidato a vereador que sabe que é verdade”, provoca.
As mesas em que se sentam os políticos, os artistas e tanta “gente como a gente” têm mais uma peculiaridade, trazem os nomes dos bisnetos de Futrica. “Tudo começou com o meu neto, Nicolas, que só se sentava na mesa três. Aí coloquei o nome dele lá, e só depois de muitos anos, com ele já crescido, ele me contou que era porque tinha 3 anos (risos)”, relembra o vovô Sidney. Hoje, com a família crescida, outros nomes foram batizando mesas: Yasmin, Alexandre, Guilherme, Bernardo… ” E chega, gente! Toda hora nasce uma criança, daqui a pouco vai faltar mesa!”, diz, aos risos Ademir, avô de uma parte da trupe.
No balcão, eu e a repórter Bárbara Landim roubamos assentos de clientes cativos, que ocupam os mesmos bancos quase diariamente: Wilsão, Nazareno, Rico, todos apelidados ali no bar. Batemos papo com alguns outros, como “El manco”, Ermelindo Farias, que bate cartão por lá ainda pela manhã. “Tem muita cumplicidade entre os donos e muito respeito com os clientes. Ficamos amigos mesmo. Chego aqui e já descolam minha cerveja gelada e minha pizza. O atendimento é nota 10.” De fato, ainda que intrusas nos tamboretes reservados, eu e Barbara não deixamos o bar sem degustar a pizza grega e constatar porque o Futrica é um sessentão de dar gosto. Sorte de Juiz de Fora.