Exposição ‘Memória Mascarenhas’, no CCBM, relembra trajetória da antiga companhia têxtil
Local abriga o espaço cultural desde 1987
Há mais de três décadas localizado em uma das icônicas edificações da Avenida Getúlio Vargas, o CCBM (Centro Cultural Bernardo Mascarenhas) surgiu das cinzas e – principalmente – escombros de uma das mais importantes indústrias instaladas em Juiz de Fora: a Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas. Para lembrar sua trajetória quase centenária de atividades na economia local, além do movimento artístico para sua reinvenção, o espaço recebe até 16 de fevereiro a exposição “Memória Mascarenhas”.
Organizada por uma das coordenadoras do CCBM, Fernanda Cruzick, a mostra reúne fotografias, documentos e obras de artistas – a maioria do acervo do próprio centro cultural – para recontar a trajetória da fábrica. O material engloba a abertura da Companhia Têxtil em 1888, por Bernardo Mascarenhas, passando pelas décadas em que foi uma das principais fábricas de tecido da cidade, a crise que culminou no encerramento de suas atividades, a decadência e o abandono do espaço, o histórico movimento dos artistas juiz-foranos para transformar o local num espaço de criação, a partir de 1983, e a concretização desse sonho com a inauguração do CCBM, em 31 de maio de 1987.
“Queria mostrar mais a história do prédio e sua ligação com a classe artística, até porque muitos que participaram da campanha (para a criação do CCBM) ainda estão vivos”, explica Fernanda. Além de fazer um levantamento do acervo do centro cultural, eles pedem à classe artística que doe qualquer fragmento que tenha da história do prédio. “É uma forma de completar as lacunas, refazer essa história, em especial dos primeiros anos do CCBM. É importante manter isso vivo para as novas gerações. Nas visitas guiadas, sempre percebemos muita curiosidade a respeito da história da fábrica. Daí surgiu a ideia de uma exposição física.”
Para Fernanda, todo o complexo da fábrica que resistiu ao tempo serve como testemunha da história de Juiz de Fora. Ela destaca que o espaço cumpriu seu papel em diversos aspectos, como econômicos e de desenvolvimento da tecnologia. Fernanda lembra ainda que, além da Companhia Têxtil, Bernardo Mascarenhas construiu a Usina Hidrelétrica de Marmelos e foi um dos fundadores do Banco de Crédito Real. Tudo numa região próxima da cidade, assim como seu “vizinho” empreendedor, Pantaleone Arcuri.
Outro ponto destacado pela coordenadora é o fato do comando da fábrica ter ficado, poucos anos depois de sua abertura, nas mãos de uma mulher. “O Bernardo morreu em 1899, e quem tocou os negócios até 1916, quando morreu, foi a Viúva (como se dizia na época) Amélia Guimarães Mascarenhas. Os filhos então assumiram a fábrica e modernizaram sua estrutura”, relata. Na exposição, aliás, é possível ver em uma foto de 1910 alguns dos teares que ocupavam espaços imensos na Companhia Têxtil.
Movimento histórico
Na linha de tempo da exposição, ela se encerra com outro momento marcante na história da construção que abrigou a fábrica, que, segundo informado por Fernanda, teve suas atividades oficialmente encerradas em 1984. Porém, já em 1983, com o espaço em escombros, a classe artística juiz-forana lançou a campanha “Mascarenhas, meu amor!”, que reivindicava a transformação da Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas num espaço para a cultura.
“A mobilização dos artistas teve repercussão nacional, inclusive saiu no ‘Jornal do Brasil'”, relembra Fernanda, que na época estudava na UFJF e dava seus primeiros passos na produção artística. “A transformação da fábrica em centro cultural foi a segunda experiência do tipo no Brasil, a primeira havia acontecido em São Paulo. O movimento foi uma explosão de afetividade e movimentação da classe.”
“Artistas locais e de repercussão nacional participaram da campanha. Entre eles estavam o Ruy Merheb, Gueminho Bernardes, Carlos Bracher, Ramon Brandão, Affonso Romano de Sant’Anna, Nivea Bracher, Marina Colasanti, Jorge Sanglard, Fani Bracher, Dnar Rocha”, complementa. Um dos destaques da mostra, inclusive, é a foto histórica feita em frente à então desocupada fábrica, em que é possível identificar várias dessas personalidades.
“Esse movimento foi fundamental, pois o CCBM é uma casa de exercício da arte, abriga o artista e oferece várias possibilidades de ocupação durante o ano inteiro. É importante, por isso mesmo, que o artista não apenas exponha, mas também visite o espaço”, encerra.
Lembranças de um momento histórico
Um dos participantes do movimento que resultou na criação do CCBM, o ator e diretor Gueminho Bernardes guarda muitas lembranças da época. “Eu poderia falar por 40 minutos sem parar apenas do que me lembro (risos)”, afirma. De acordo com ele, na verdade tudo começou com a polêmica sobre a viabilidade da construção do Teatro Paschoal Carlos Magno, que se tornaria realidade apenas em 2019.
“O teatro não era unanimidade. A opinião era que valia mais a pena investir na reforma de prédios antigos que estavam em condições críticas. Aí veio à tona que o prédio da Mascarenhas estaria em processo de demolição, pois havia uma dívida gigantesca, e surgiu o plano de investir na restauração do prédio”, relembra.
“Foi quase um ‘movimento pirata’, pois invadimos o espaço para fazer fotos de seu interior e levamos para a mídia essa questão”, acrescenta. “Várias pessoas foram importantes nesse momento, e o assunto explodiu. A comunidade cultural começou a se reunir, veio a ideia de não somente salvar o prédio, mas transformá-lo num espaço cultural.” Nessa época, diz ainda, muitos artistas estavam em contato direto com o pessoal do Circo Voador, que simultaneamente lidava com a questão da Fundição Progresso, há muitos anos um dos principais espaços culturais da região da Lapa, no Rio de Janeiro.
“Começamos a campanha ‘Mascarenhas, meu amor!’, nome sugerido por mim e que foi importante para criar uma relação de afeto com o espaço. Fizemos teatro de rua, fomos para as rádios, invadimos vários espaços. Essa mobilização culminou com aquela foto histórica em frente ao Mascarenhas, que ajudou a colocar a campanha num outro patamar. Talvez tenha sido a maior campanha a envolver a comunidade cultural e a população de Juiz de Fora, pelo menos a que deu certo. É algo do qual tenho muito orgulho.”
Questionado se o CCBM cumpriu a proposta imaginada pela classe artística há quase 40 anos, Gueminho Bernardes fica dividido. “Vou dizer que sim e que não. O nosso sonho era que fosse um espaço mais coletivo, de formação do artista. Era pra ser uma fábrica de cultura, com mais oficinas, e depois de 30 anos não temos um espaço de ensaios para o teatro, por exemplo. Conseguimos algumas vezes, pois contamos com a boa vontade do pessoal que trabalha por lá atualmente. Mas o principal é termos conseguido preservar um espaço, um pedaço da memória da cidade, mesmo não sendo o que sonhamos. É um espaço importante, mas acredito que fracassamos como fábrica de cultura no strictu sensu.”