Criador versus criatura em ‘Bob Cuspe: Nós não gostamos de gente’

Longa de Cesar Cabral mostra relação entre cartunista Angeli e um de seus mais famosos personagens; produção está na lista de elegíveis ao Oscar de animação


Por Júlio Black

21/12/2021 às 07h00

Um dos mais famosos personagens de Angeli, Bob Cuspe sai à procura de seu criador em animação dirigida por Cesar Cabral (Foto: Reprodução)

Existe toda uma geração – talvez duas – que não conhece filmes como “O clube dos cinco”, séries como “TV Pirata” e revistas como “Chiclete com Banana”, que na década de 80 contava com um grupo de cartunistas que era a nossa versão “dream team” da nona arte: Glauco, Laerte, Luiz Gê e vários outros artistas geniais. O idealizador da publicação, o paulistano Angeli, é criador de personagens que marcaram jovens e adultos da época, como Rê Bordosa, os Skrotinhos, Rhalah Rikota, Walter Ego, Wood & Stock.

Ele também publicava histórias daquele que é visto, hoje, como seu alter ego: o punk Bob Cuspe. E é esse personagem, que representava o “no future” brasileiro, o coprotagonista – junto a seu criador – do longa animado “Bob Cuspe: Nós não gostamos de gente”, que estreou nos cinemas em novembro – mas não em Juiz de Fora, infelizmente – com a credencial de ter recebido o Prêmio Contracampo, em junho, no Festival Internacional do Filme de Animação de Annecy, na França, e de ser a primeira produção latino-americana a receber o principal prêmio do Festival de Ottawa, um dos mais importantes no universo da animação.

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O filme dirigido por Cesar Cabral ainda está na lista das 25 produções elegíveis para o Oscar de animação em longa-metragem, que terá seus indicados anunciados no início de 2022. Para aumentar as chances de indicação, o filme vai ganhar lançamento nos Estados Unidos com o título “Bob Spit – We do not like people”.

“Bob Cuspe: Nós não gostamos de gente” demorou quase dez anos para ser realizado, mas a espera valeu a pena. Angeli já teve sua carreira retratada em outras ocasiões e seus personagens apareceram em várias produções audiovisuais. Desta vez, o roteiro escrito por Cabral e Leandro Maciel usa a técnica de stop-motion para misturar ficção e realidade a fim de analisar a obra do cartunista, seu processo criativo e a relação com alguns de seus personagens mais icônicos, a partir de depoimentos do próprio artista colhidos durante vários anos e que foram utilizados na animação.

Cesar Cabral usa essas gravações para criar um “documentário” em que o cartunista fala de sua vida, obra, carreira, processo criativo, personagens, angústias e um pouco mais. E é a partir das declarações desse Angeli ora angustiado, ora mal-humorado, ora disposto a se abrir, que descobrimos – no que poderíamos chamar de “bastidores da mente” – o terror de quase todo artista: o deserto criativo, que é onde vive um Bob Cuspe mais velho e cansado de guerra.

Pós-apocalipse mental

Nesse mundo pós-apocalíptico mental ao estilo “Mad Max”, tudo o que Bob Cuspe deseja é ficar no seu canto, ouvindo o bom e velho punk rock enquanto mata incontáveis versões assassinas de Elton John, que representam o pior pesadelo de um punk “raiz”: tornar-se pop. É graças a outros personagens criados por Angeli, os Irmãos Kowalski, que ele descobre que seu criador pretende matá-lo, e por isso parte em uma jornada para enfrentar seu criador/alter ego. No caminho, ele encontra outros personagens clássicos, como os Skrotinhos, Rhalah Rikota e até mesmo Rê Bordosa, “assassinada” por Angeli ainda nos anos 80. A experiência é enriquecida, ainda, pela trilha sonora, que reúne nomes do rock paulistano dos anos 80, como inocentes, Mercenárias e Titãs.

A partir desse processo de metalinguagem, Cesar Cabral entrega um filme que permite ao espectador conhecer melhor um dos maiores ilustradores brasileiros. Angeli sempre foi um artista – com o perdão do clichê – inquieto, e a forma como lidou com muitas de suas criações deixa isso explícito. Ao juntar os depoimentos do “velho artista” com a metáfora do punk velho, cansado mas ainda iconoclasta, o longa permite ao público se aproximar do ilustrador que, aos 65 anos, olha para trás e questiona suas decisões criativas e tenta entender quem ele se tornou.

São várias as perspectivas sobre Angeli que “Bob Cuspe: Nós não gostamos de gente” oferece ao espectador: a relação entre criador e criatura(s); o quanto artista e personagem se confundem; o peso emocional de matar um personagem que é (praticamente) seu alter ego; e o pesadelo de enfrentar uma crise criativa e existencial.

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Não à toa, uma das legendas no início do filme avisa que a produção é baseada “em fatos reais da obra fictícia do cartunista Angeli”. Apesar do desafio nada fácil, “Bob Cuspe: Nós não gostamos de gente” cumpre sua missão de forma magistral.

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