Créditos finais


Por Mauro Morais

21/05/2017 às 07h00

Registro de 1998: deteriorado por 15 anos, o Cine Palace foi revitalizado e aberto ao público em 1999 (Foto: Roberto Fulgêncio/arquivo TM)
Registro de 1998: deteriorado por 15 anos, o Cine Palace foi revitalizado e aberto ao público em 1999 (Foto: Roberto Fulgêncio/arquivo TM)

 

Era 20 de junho de 1988 quando a servidora municipal Suely Souza, secretária da Comissão Permanente Técnico-Cultural do Instituto de Pesquisa e Planejamento de Juiz de Fora solicitou a abertura do processo “Declaração de interesse cultural do bem – Edifício do antigo Cine Palace”, baseando-se na Lei 7.282/88. O gesto servia como resposta à tentativa de descaracterização proposta pelo Banco Bamerindus, que estudava a compra do imóvel, de posse do Banco Banerj, que arrematou o edifício após o mesmo ter servido a um luxuoso cinema administrado pelos irmãos Caruso.

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Indicando o cadastramento da construção no pré-inventário de bens culturais arquitetônicos de Juiz de Fora, a Prefeitura, na época, respondeu ao empreendimento sinalizando anuência em relação às reformas, entendendo tratar-se de “possibilidade concreta de se viabilizar um empreendimento que inclua a preservação do imóvel”. O Bamerindus, contudo, declinou da compra. O paradoxo – o aceite das modificações em prol da conservação – é, apenas, o ponto de partida para uma série de incoerências que marcam a tentativa de salvaguarda de um espaço cuja história é novamente ameaçada diante da iminente extinção da tradicional utilização do imóvel de estilo art déco como cinema.

“Desativado, o Palace aguarda a demolição”, anunciou o extinto “Diário da Manhã”. Era 5 de julho de 1990. Passados 15 dias, o então proprietário Banerj resolveu pela reforma do edifício, noticiada sem alardes pelos jornais locais. Característica dos procedimentos públicos, a burocracia e a morosidade do processo de preservação municipal do prédio chegou ao fim quase quatro anos depois de ter sido iniciado. Apesar de ao longo desse período o projeto ter sido tratado como tombamento, era 10 de abril de 1992 quando o prédio foi declarado de interesse cultural para a cidade, como especificado no primeiro documento.

Fruto de uma registrada negociação, o decreto assinado pelo então prefeito Alberto Bejani permitia, no entanto, alterações na fachada e criação de novos vãos de entrada pela Rua Batista de Oliveira. Ainda assim, não foi o bastante. Era 29 de janeiro de 1993, e a Tribuna noticiava o fechamento, com concreto, das portas e janelas do antigo Palace. Notificações foram feitas, bem como as respostas do banco em crise, alegando não encontrar alternativas para a conservação. Era 2003, o prédio estava revitalizado, mas o cenário econômico do negócio mantinha-se o mesmo, tanto que em ofício redigido pelo escritório Azevedo e Magalhães Advogados Associados é solicitado o indeferimento do processo de tombamento do bem. No mesmo documento, os defensores do Banerj sugerem a compra do prédio pela Prefeitura.

Brechas documentadas

Ironicamente, passados 12 anos, a importância arquitetônica do imóvel foi reconhecida pela Prefeitura, que já havia, em 1992, reconhecido a relevância histórica do local. Era 28 de maio de 2004, o prefeito em exercício era Tarcísio Delgado, que assinou o decreto tombando o prédio. Expressamente, uma lei não revoga a outra. Ficaram, então, valendo dois decretos. Enquanto o primeiro prevê a restrição de uso, o outro se limita à preservação da fachada e volumetria. O imbróglio, a demonstrar o descaso do Poder Público e da sociedade com a questão, é compartilhado com outros imóveis da cidade, que também gozam de duas legislações.

Era o terceiro dia de dezembro de 2014, quando o arquiteto Paulo Gawryszeswski, então servidor da Divisão de Patrimônio Cultural da Funalfa, em ofício enviado à assessoria jurídica da pasta, questionou: “A aplicação do instrumento tombamento do bem implica que, automaticamente, a declaração de interesse cultural deixou de existir ou o decreto de tombamento está errado e deveria revogar o decreto de declaração de interesse cultural?”. Enquanto o assessor e um procurador apontaram para a necessidade de revogação da lei de 1992, a Procuradoria Geral do Município decidiu como sendo “desnecessária a revogação expressa do Decreto 4.587/1992, tendo em vista que o Decreto 8.247/2004 o revogou tacitamente”.

Um mês após a publicação de tal posição, o imóvel foi arrematado em leilão, por pouco mais de R$ 6 milhões, em cheque à vista, o que garantiu 10% de desconto do lance mínimo de R$ 6,7 milhões. Era 20 de fevereiro de 2017, dois anos se passaram, quando o arquiteto Paulo César B. de Toledo Lourenço (o mesmo que assinou o projeto para a instalação da Fábrica de Doces Brasil no local) deu entrada, na Prefeitura, com o “Pedido de informações básicas para aprovação de projeto”, indicando, em seu requerimento, o uso “comercial/serviços”. Segundo o profissional, trata-se de um primeiro passo e ainda não há uma definição exata sobre a destinação do imóvel, o que deve acontecer assim que as informações forem fornecidas e uma análise detalhada for executada.

Passadas quase três décadas desde o início do processo que visava à preservação do Cine Palace, restaram muitas brechas e um escasso interesse público (do Poder e da sociedade), documentado em ofícios, recortes e atas às quais a Tribuna teve acesso nesta semana. Diante de diferentes possibilidades de efetiva defesa do patrimônio, sequenciais governos e gerações se abstiveram. Então, o tempo, em toda a sua incerteza, toma as rédeas para dizer: Era uma vez um cinema de rua.

Nada feito

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Registro de 2017: cinema fecha as portas no início de junho (Foto: Fernando Priamo)

Dentre as tentativas de cercar a preservação do prédio e do cinema, estão dois processos que não chegaram ao fim pretendido: o tombamento interno do prédio, em 2014, recusado em reunião da Comissão Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (Comppac); e o requerimento datado de 2009, do então vereador Flávio Cheker, solicitando a declaração de interesse cultural do imóvel, que sequer chegou a ser encaminhado à Funalfa. O que a proposta do político e o projeto de tombamento interno sugeriam era a permanência do uso do lugar enquanto sala de cinema.

“O fechamento e/ou possível transformação do local em uma atividade distinta do originalmente planejado para ele é deixar morrer um pouco de identidade de cada um de nossos cidadãos e condenar a coletividade a viver com menos raízes”, pontua o requerimento aprovado pela Câmara Municipal, mas ignorado em sua destinação. Não consta, nas atas do Comppac, qualquer recebimento do requerimento, o que sugere sua estagnação ainda na Câmara.

A favor do tombamento interno, o arquiteto e professor do departamento de história da UFJF Marcos Olender pertencia à comissão quando houve a votação. Foi voto vencido. Agora, se manifesta, mais uma vez, pela preservação do uso do prédio. “O Palace é o único cinema de rua que resta em Juiz de Fora e, também, o único espaço na cidade que exibe filmes do circuito alternativo, mesmo tendo se rendido ao comercial. Era o lugar dos festivais.”

Segundo o superintendente da Funalfa Rômulo Veiga, o tombamento interno foi rejeitado pela compreensão de que o imóvel já se encontrava descaracterizado. “Hoje existe um interesse muito grande em identificar um culpado nessa história. Foram dadas à sociedade várias alternativas, inclusive a própria ocupação, que não foi realizada”, pondera Veiga, destacando uma frequência muito aquém do esperado.
“Minha grande amargura é perceber que a própria sociedade já não frequentava”, critica o superintendente, cineasta e cinéfilo, colecionador de dezenas de tíquetes de sessões no Palace. De acordo com ele, a contrapartida do investimento de dinheiro público municipal no cinema, cerca de R$ 200 mil anuais possibilitavam a frequência de 94 mil espectadores por ano, gratuitamente. A média anual, porém, é de 16 mil pessoas, 17% do total.

“Um espaço como esse precisa de investimentos e política cultural. Não é da natureza dele, pelo menos a curto prazo, se manter pela ótica do lucro”, defende o pesquisador Olender, apontando para a necessidade de uma participação mais potente do Poder Público em parceria com a iniciativa privada. “Sessões subsidiadas, isso é muito pouco”, critica.

Feito nada

Para Marcos Olender, ainda que o Ministério Público entenda a revogação subliminar do decreto que declarava ser de interesse cultural o Cine Palace, é passível interpretação contrária da Justiça, o que alimenta a luta iniciada pelo movimento “Salve Cine Palace”, liderada por estudantes universitários, em sua maioria dos cursos de comunicação social, artes e arquitetura, além de professores e estudiosos. “O tombamento não garante o uso de um prédio, mas fica claro que a utilização não pode ameaçar a preservação do bem, ou seja, acaba havendo uma restrição”, sugere Olender.

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“O tombamento não altera a propriedade do bem e nem leva à desapropriação do mesmo”, observa a advogada e consultora da Rádio CBN Juiz de Fora Simone Porcaro. De acordo com ela, “o Poder Público pode e deve restringir a utilização do bem tombado e seu entorno, porém o tombamento não serve para retirar a propriedade e nem desapropriar bem privado”. A falha que existe na questão patrimonial, como revela o caso do Cine Palace, é, segundo Olender, “a ausência de um instrumento legal que diga respeito ao uso do imóvel”.

Diante de um cenário que envolve mais de duas décadas de processos relativos ao tombamento do Cine Palace e algumas reviravoltas, é utopia pensar na possibilidade (e no interesse real) de preservação do espaço de cinema? Para Olender, diretor de patrimônio do Instituto de Arquitetos do Brasil em Juiz de Fora e representante da seção mineira da Associação Nacional de História no Conselho Estadual de Patrimônio, a morosidade reflete a realidade de uma pasta constantemente negligenciada.

“A Divisão de Patrimônio Cultural sempre foi muito mal articulada”, afirma Olender, que renunciou à comissão patrimonial em meados de 2016, alegando que na atual configuração não há representante da área do patrimônio com experiência acadêmica ou técnica comprovada. Segundo o atual superintendente da Funalfa, a cadeira do instituto dos Arquitetos do Brasil, pela qual Olender respondia, continua vazia, sem indicações do órgão.

“Hoje, possível à Funalfa seria conseguir avaliar com o novo proprietário as perspectivas para o prédio e também viabilizar um projeto para propor um aluguel do espaço”, sugere Rômulo Veiga.

Cabe, portanto, compreender a quem servem os tombamentos e as discussões patrimoniais locais. Enquanto se prepara para os créditos finais, encerrando uma era na cultura local, o Cine Palace abre as portas para a urgência real em se tratar com eficiência e comprometimento a memória arquitetônica e cultural de Juiz de Fora.

 

 

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