O ano que (quase) não aconteceu

Com a pandemia do coronavírus, Juiz de fora teve uma série de eventos culturais adiados ou cancelados desde março


Por Júlio Black

20/12/2020 às 07h00

Logo que foi aceso o sinal amarelo-quase-vermelho da pandemia de Covid-19, em meados de março, o setor cultural foi um dos primeiros a ser afetados pela suspensão das atividades. Shows, peças de teatro, exposições foram canceladas ou adiadas, cinemas, museus e espaço culturais de todos os tipos fecharam as portas à espera de uma mudança no quadro geral. Passados mais de nove meses, a cultura foi um dos raros setores em que o bom-senso ditou as ações, talvez por não ter a mesma força política de outros setores econômicos que pregam que “a economia não pode parar” a despeito do aumento pavoroso de contaminações e, principalmente, mortes.

Com isso, 2020 foi o ano que (quase) não aconteceu para a cultura do Brasil, e em Juiz de Fora não foi diferente. Artistas realizaram lives, festivais e outros eventos foram realizados de forma virtual, livros foram lançados e até mesmo álbuns e singles foram gravados e chegaram às plataformas de streaming, mas muito do que estava programado precisou ficar para 2021.

PUBLICIDADE

Adiamentos em série

Braço cultural da Prefeitura de Juiz de Fora, a Funalfa precisou adiar ou cancelar uma série de eventos e festivais durante o ano. Dentre os principais, o Corredor Cultural, que marca as comemorações do aniversário da cidade, em maio, foi cancelado quando já estava em início de produção. O mesmo aconteceu com o Festival Pólen, agendado para novembro; a Semana da Consciência Negra, no mesmo mês; o retorno do TraveCine no Núcleo Travessia; eventos do Programa Gente em Primeiro lugar como recital de música, Cenas Curtinhas, espetáculo de dança e todas as apresentações de final de ano; e eventos da Praça CEU, como a comemoração dos cinco anos de inauguração e festival de dança, a 2ª Corrida Social do CEU e as apresentações das turmas das oficinas.

“A nova realidade instaurada pegou todo mundo de surpresa, e com a Funalfa não foi diferente. Tivemos que descobrir e reinventar novas formas de atuação e de conexão com os agentes culturais da cidade. Uma dessas formas foi a criação do Cultura Conecta, encontros virtuais que possibilitaram diversos momentos de encontro e de troca entre o Poder Público e a classe artística da cidade”, diz a diretora-geral da Funalfa, Tamires Fortuna, ressaltando que, por se tratar de uma situação inédita, a possibilidade de volta e a necessidade de cancelamento e/ou adiamento foram sendo descobertas com a passagem dos meses. Aos poucos foram retomadas aulas on-line do Gente em Primeiro Lugar, a devolução de livros nas bibliotecas e o atendimento presencial agendado na sede.

Eventos virtuais

Em meio às indefinições, a Funalfa acabou por apoiar ou organizar eventos e iniciativas pela internet. Foi o caso, por exemplo, do Festival Primeiro Plano, um dos contemplados pelo edital de 2019 da Lei Murilo Mendes, cujo resultado foi divulgado em abril. “A proponente entrou com um pedido de adaptação do projeto aprovado para a realização no formato virtual, que na época de inscrição ainda não era uma realidade necessária. Logo que divulgamos o resultado do Programa Cultural Murilo Mendes, fizemos uma reunião virtual com os contemplados para explicar que mudanças deste tipo seriam possíveis, desde que justificadas e aprovadas pela Comissão Municipal de Incentivo à Cultura (Comic)”, destaca, falando ainda do Na Nuvem – Edital de Incentivo à Cultura, projeto adaptado para o momento de pandemia e a possibilidade de realização virtual.

O incremento do diálogo com a classe artística é um ponto positivo observado por Tamires. “Estabelecemos uma relação curiosamente mais íntima com a classe ao longo desses nove meses, apesar do distanciamento. Através do Cultura Conecta, criamos um canal constante de escuta e de troca com a classe artística, uma forma, ao meu ver, muito mais democrática de possibilitar o acesso às informações e às oportunidades geradas pela Funalfa”, analisa.

Necessidade de reinvenção

Para a pró-reitora de Cultura da UFJF, Valéria Faria, 2020 foi “um ano difícil e atípico”, em que foi preciso se reinventar e explorar o universo virtual para fazer com que a cultura ocupasse seu espaço e chegasse até o público. “Infelizmente, alguns planejamentos não foram executados, como a exposição que seria inaugurada neste domingo (20) em comemoração aos 15 anos de criação do Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) e aos 25 anos de chegada da coleção de artes plásticas do poeta ao Brasil. Essas mostras não foram canceladas, mas transferidas para 2021, assim como o livro ‘Coleção Murilo Mendes: 25 anos’, já organizado por mim, enfocando de forma inédita esse acervo excepcional. O chamamento público para investimento de empresas está em curso e vai até meados de janeiro”, conta.

Entre outros adiamentos, houve o da inauguração da Escola de Artes Pró-Música, prevista para março. O mesmo se deu com o lançamento presencial do livro “Patrimônio vivo”, revisto e atualizado para comemorar os 60 anos da UFJF, e a distribuição da primeira edição física da revista “Poliedro”, que ficaram para 2021. “É importante salientar que houve um grande esforço da Pró-Reitoria de Cultura para dar continuidade às atividades remotamente, sendo que os espaços não ficaram parados. Fizemos uma série de atividades, em todos os setores; inclusive, as áreas educativas trabalharam o tempo todo, assim como as bibliotecas, que chegaram a receber alguns pesquisadores presencialmente, caso do Mamm”, destaca.

“Ao longo do ano, os equipamentos culturais primaram pela realização de webnários, concertos e mostras, participando de eventos nacionais e internacionais. Um bom exemplo desse esforço de transformar as atividades presenciais em opções via internet é o Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, que teve sua primeira edição virtual e foi um sucesso de público on-line”, acrescenta.

Iniciativas virtuais

Valéria lembrou, ainda, da realização do Prêmio Janelas Abertas, direcionado à comunidade artística onde a instituição tem seus campi (Juiz de Fora e Governador Valadares) e a versão 2020 do Programa de Bolsas de Iniciação Artística (Pibiart), que teve 120 projetos selecionados no início do segundo semestre, conseguindo se adaptar aos reflexos da pandemia. “Oferecemos a opção de início imediato dos projetos para aqueles que possibilitassem atividades remotas, ou a de somente começar quando houvesse o retorno das atividades presenciais da universidade. Também foi publicada digitalmente a revista ‘BIA’, com foco nos principais trabalhos desenvolvidos pelo programa no ano anterior.”

Outro evento destacado pela pró-reitora de cultura foi a mostra coletiva “Fissuras do tempo”, na Galeria Espaço Reitoria, no campus, que não pode ser visitada mas pode ser conferida na internet, refletindo sobre o drama do isolamento de grande parte da população. “Antes mesmo de 2020 terminar, já mirando em 2021, lançamos, em homenagem a Clarice Lispector, o edital de convocação para artistas interessados em participar da coletiva ‘Renda-se como eu me rendi: 100 anos de Clarice'”, encerra.

Montada na Galeria Espaço Reitoria, a exposição “Fissuras do tempo” só pode ser vista on-line
(Crédito: Divulgação)

 

O teatro privado dos palcos

O ano de 2020 foi de muitos desafios, adiamentos e cancelamentos para a classe artística em geral, especialmente para aqueles que dependem do contato direto com o público, o corpo a corpo. O diretor José Luiz Ribeiro, do Grupo Divulgação, apresentaria nada menos que sete peças no Forum da Cultura com os núcleos infantil, de adolescentes, universitário e da terceira idade, além dos cursos com essas turmas. Uma das peças já estava até definida: “Despejo”, sobre Adoniran Barbosa, estrearia em abril com o núcleo formado pelos universitários.

“A gente precisou se reinventar. A peça sobre o Adoniran Barbosa ‘morreu’, muitos dos estudantes devem ter se formado este ano e não retornarão. Durante esse tempo, fiz mais de cem lives falando sobre teatro, conversando com as pessoas. Foram encontros com pessoas do país inteiro e do exterior, que trabalharam com a gente”, conta. “Não sabemos quando voltaremos. O pessoal da terceira idade perguntou quando iríamos voltar, e respondi que só em 2025 (risos).” Na opinião de José Luiz, não há muito o que fazer no momento, a não ser esperar. “Quando voltar, teremos que recomeçar tudo de novo, pois as pessoas estarão desacostumadas com as coisas presenciais, ao invés do on-line, que para mim não tem o mesmo significado. Teremos que nos reinventar.”

José Luiz Ribeiro viu pelo menos sete espetáculos serem cancelados
(Crédito: Marcelo Ribeiro/Arquivo TM)

No caso do projeto Hupokhondría, a atriz Táscia Souza diz que o plano era circular com os premiados espetáculos “A linha 2” e “Educandário São Bernardo”. Porém, a pandemia cancelou editais e apresentações, e o grupo optou por não realizar performances remotas. “O Hupokhondría, no entanto, é um projeto narrativo que se vale de múltiplas linguagens, sendo a escrita a principal delas. Mesmo nosso fazer teatral passa antes pelo texto dramático, e essa pesquisa e essa produção prosseguiram virtualmente. Além das publicações semanais de contos no blog hupokhondria.com, lançamos o Phármakon nas plataformas digitais, um canal com gravações em áudio dos nossos textos e de convidados”, conta. “E mantivemos também, ainda que pela tela dos computadores, a frequência de encontros quinzenais do nosso grupo de estudos narrativos, dando início a um ciclo temático sobre realismo fantástico na literatura. Num ano tão distópico, talvez tenha sido essa magia que nos ajudou a nos mantermos sãos”, reflete Táscia.

O conteúdo continua após o anúncio

Adiamento próximo da estreia

Outro grupo de Juiz de Fora, o Corpo Coletivo iria estrear um novo espetáculo, “Oxigênio”, com integrantes do Coletivo Ozônio (formado por vários grupos locais), mas ele foi adiado duas semanas antes da estreia por causa da pandemia e não teve apresentação virtual – e, segundo a atriz Carú Rezende, eles não sabem se a peça será apresentada em algum momento futuro. “Nossa participação no Festival de Curitiba também foi cancelada. Iríamos participar com ‘Casa dos espelhos’, ‘Plástico bolha’, ‘(In)cômodos’ e uma cena curta, além do próprio ‘Oxigênio’. Toda a programação d’OAndarDeBaixo também foi cancelada”, detalha a atriz, referindo-se a apresentações e oficinas.

Segundo Carú, outro projeto adiado foi o “Espaçonave – Uma odisseia poética”, aprovado pela Lei Murilo Mendes e que seria o novo espetáculo do Corpo Coletivo. O grupo teria a orientação de nomes importantes do teatro de fora da cidade, mas resolveram adiar o início do processo, pois dois dos convidados têm mais de 80 anos. “Preferimos não dar continuidade ao processo pela internet, pela importância do contato”, explica.

Durante os nove meses de isolamento, o Corpo Coletivo chegou a fazer algumas apresentações virtuais. Pelo Instagram, foram adaptados “Casa dos espelhos” e “(In)cômodos”, e até participaram de um festival internacional com este último. E fizeram produções específicas para a internet, como a experiência cênica virtual #teatroantivirus, que misturou teatro e audiovisual, uma mostra de performances e outros eventos virtuais. “Vamos levar esse aprendizado para o resto da vida. Quando voltarmos a nos reunir para os próximos espetáculos, vamos manter algumas coisas que aprendemos, o que foi conquistado não pode ser perdido”, acredita Carú.

Shows, festivais e álbuns adiados

Na área musical, os efeitos foram sentidos principalmente no que diz respeito aos shows. O produtor Luqui Di Falco, do Gig Lab e Cultural Bar, relata que o espaço de shows tinha agendado 19 eventos entre 20 de março e 11 de julho, que precisaram ser adiados. Entre eles, shows do 14 Bis, Emmerson Nogueira, The Wailers, festivais como o Sol-Te e Da Mata, que trariam para a cidade nomes como Cidade Negra e Raimundos, e também o JF Rock City, que aconteceria entre 1º e 3 de maio.

“As incertezas e falta de programação para o retorno das atividades têm sido a principal novela que enfrentamos. Pior que a sensação de ter alguns shows marcados com tíquetes comercializados – e não saber quando serão realizados – é não ter nenhuma previsão para falar aos clientes se acontecerão ou não no primeiro semestre de 2021”, afirma. “Essa incerteza, essa falta de esclarecimento, minou e está minando todo o fluxo ao redor da área cultural nessa pandemia.”

Enquanto alguns artistas conseguiram lançar singles e álbuns mesmo durante a pandemia, também houve quem preferisse adiar os planos. É o caso da Basement Tracks que, segundo o guitarrista Ruan Lustosa, vinha de um segundo semestre de 2019 agitado e animador. Eles lançaram o single “Heavy dream” em dezembro – uma prévia do novo álbum que seria lançado em 2020. “Já estávamos com duas músicas gravadas e iríamos entrar em estúdio no final de março para finalizar o disco. Mas não rolou; a gente não ensaiou ou se encontrou desde então, e não temos perspectivas de quando voltaremos.”

 

 

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.