Reflexões e impressões de fotógrafos sobre o JF Foto 17
Como foi visitar as exposições individuais do JF Foto 17 junto a fotógrafos de gerações e propostas de trabalhos diferentes
Impressionante que mesmo em um mundo imagético por completo, com 99,9% das timelines virtuais sendo constituídas por vídeos e fotos, e centros urbanos que nos pegam a cada segundo por um recém-chegado cartaz e telão, ainda conseguimos ter um lance profundo de reflexão diante de uma fotografia. Principalmente se esta foi deslocada para dentro de uma galeria de arte. Nesse caso, há, inclusive, a imposição de se abstrair um sentimento, senão um significado, a partir daquele estímulo visual.
O JF Foto 17 preencheu os corredores e salas do CCBM com exposições de retratos, fotografia social, fotografia documental, colagens, do daguerreótipo ao digital, e o flerte com o analógio sempre presente. Oito delas são obras organizadas e assinadas individualmente: “Totoma!”, “Amigos da Lira Guaraniense”, “Tempo improvável – Daguerreótipos”, “Yes, nós temos iglus”, “Meu sertão”, “Espelhos da alma”, “Dia de slam” e “Memória coletiva”, sendo que as últimas três são do VI Prêmio Funalfa de Fotografia.
A visita solitária me permitiria captar bem menos do que o convite que me dispus a fazer: três fotógrafos juiz-foranos me acompanharam na tarde da última terça-feira,14, quando fomos pontuando o que aquelas exposições nos despertavam. Nina Mello trabalha há décadas como fotógrafa, começou no fotojornalismo contribuindo na Tribuna, até se encontrar em um trabalho particular e “mais” autoral. Pedro Soares é menino novo, nem foi preciso sair da faculdade de jornalismo para já ter escolhido a fotografia como plataforma para contar suas histórias; suas primeiras experimentações foram os autorretratos. Leonardo Costa, fotojornalista da Tribuna de Minas há pelo menos dez anos, também aceitou a ideia de ser parte dessa reportagem metalinguística, estava ali no papel de fotojornalista registrando este encontro, mas também com a voz de narrador deste texto.
Me interessa o que vem à cabeça de cada um dos fotógrafos no momento em que começam a adentrar nas fotos. Sem um roteiro demarcado, a ideia foi a de captar a eventualidade e, principalmente, o intertexto que cruzaria aquela experiência.
JF Foto 17
De terça a sexta-feira, das 9h às 21h, e sábados e domingos das 10h às 18h. Até 10 de dezembro, no CCBM (Avenida Getúlio Vargas 200). 3690-7051
O que a fotografia perguntou para nós
“Por que não o baile funk ocupar as galerias?”, perguntou retoricamente Nina, sobre a exposição “Totoma” de Dani Dacorso, fotógrafa que pela primeira vez expõe em sua cidade natal. Por mais de 10 anos, no Rio de janeiro, Dani foi a bailes funk e, como fotógrafa-antropóloga, fez trabalho de vivência e registro documental. “Contam uma história (do Brasil) como qualquer outro trabalho que vai para as galerias”, diz Pedro. Enquanto isso nossos olhos passeavam por cenas tão brasileiras quanto o samba, a religiosidade, a capoeira, mas que não entram nos discursos institucionalizados. Sim, as cenas são fortes, a cultura nos pertence e nos apunhala justamente pelo lugar que ocupa o corpo das mulheres, sempre tão objetificado. Não seria ali um retrato menos maquiado e hipócrita do que rola pelo Brasil em diversos outros espaços ditos morais?
“A fotografia vem acontecendo dentro dessas quebras. Porque hoje, se pararmos para pensar, o que é a fotografia? A partir do momento que você constrói e desconstrói ainda é fotografia?” – bastou Nina entoar esse questionamento, e ele ficou latejando em nossas cabeças ao longo da visita. “Eu passo por este questionamento no meu trabalho. Ele não é documental, eu construo, tenho trabalhado muito com arquivo, a partir de uma imagem passo a construir uma outra”, completa a fotógrafa.
O inesperado dos eventos, da cobertura, também está entre as delícias e crueldades em ser fotojornalista. “Uma das coisas que eu mais gosto de fazer é cobrir manifestação na rua. E é a mesma coisa aqui, se você perde um segundo, acabou”, diz Pedro. “Tanto que tem que estar pronta para tudo que vem. Quando vai fazer um tipo de cobertura, você tem que estar ligado ao que nem imagina. Aquela coisa do acaso existir o tempo todo, mas se não está ligado, você não pega”, fala Nina sobre o sofrimento que sentia na possibilidade de perder a melhor foto, dizendo ainda que nesse tipo de fotografia é preciso enxergar 360°.
A versão de cada um
A fotografia também nos insere em um contexto que não conheceríamos se não fosse o registro do olhar curioso de um fotógrafo. “Yes, nós temos iglus”, de Ana Rodrigues e João Paulo Pereira, é um ensaio de um conjunto habitacional atípico no Bairro Guadalupe no Rio de Janeiro. De todos que foram construídos, 22 iglus ainda estão de pé sendo habitados por pessoas. A maior parte já passou por mudanças, puxadinhos, pequenas obras, é isso que torna o trabalho mais interessante.
“Esse iglu perto daquele é muito diferente, este é muito arrumadinho, dá vontade de entrar. Tem uns que são mais bagunçadinhos, mas tem um cachorro”, vai dizendo Pedro enquanto seu olho caminha pelas fotos e as pontas dos dedos vão conduzindo seu pensamento falado. Para os nossos olhos, aquelas imagens são novas, inesperadas, não tinha chegado ao nosso cérebro nada parecido antes. “Isso lembra um trabalho que eu estou fazendo, o ‘Retratos de família’, a partir de lembranças. Eu construo um retrato de família a partir dos objetos que aquela pessoa tem: ou da família que ela quer reproduzir ou que ela quer construir. Aqui também você vê um pouco da personalidade dessas famílias em cada iglu”, comenta Nina Mello.
“Porque fez redondo? Porque fez em formato de iglu? Porque nessa rua e nesse lugar?”, são indagações que foram surgindo. E nós mesmos fomos tentando inventar suposições. Contávamos verdades paralelas à história oficial, nossa versão, delineando narrativas a partir de um ambiente particular, mas que. agora exposto, ocupa um outro lugar.
Uma pessoa a ser fotografada
O retrato tem o sabor da memória logo no instante que é feito. Dias atrás, fui fotografada por uma amiga, nos derradeiros dias dos meus 23 anos. E logo o que veio à minha cabeça foi estar podendo guardar como eu fui/sou hoje. Em “Amigos da Lira Guaraniense”, Ciceia Almeida foi retratista. Ela convidou músicos que surgiram com a Lira, fundada em 4 de novembro de 1956, e captou mais uma memória de Guarani, trabalho que tem desenvolvido pela cidade.
“Eu tenho muita dificuldade com retrato. A maior parte do meu trabalho não tem gente, eu fui perceber isso um tempo depois. Eu penso mais no rastro disso. Tem ali, alguém passou por ali, mas que alguém é esse? Tem essa coisa da construção, de deixar um significado mais aberto para quem olhar, poder imaginar o que quiser”, refletiu Nina.
“Eu gosto de ter gente, mas eu gosto mais da área de fotojornalismo, porque eu consigo ter a pessoa, mas eu não preciso que ela faça alguma coisa para mim, ela já está fazendo ali, e eu estou só registrando”, comentou Pedro Soares.
Arquitetura de sensações
Muitas vezes o artista está tão envolvido com suas próprias criações que precisa de um olhar de fora para criar uma narrativa. Ao montar uma exposição, é preciso conseguir um desprendimento de saber selecionar e deixar de fora tantas outras fotos boas. “Juiz de Fora está começando a entender a importância do curador, mas ela é muito maior. Não é simplesmente organizar. Tem um papel político importante, porque você vai estar contando uma história, e como você vai contar essa história?”, observa Nina.
O curador ajuda a criar a experiência das pessoas que estão visitando o espaço, como um quebra-cabeça enorme, só que é ainda mais abstrato de fazer conexões entre as obras e quais exposições vão estar lado a lado, porque são arquiteturas de sensações.
O velório ou a onipresença da arte
Desde Duchamp, a arte tem seus dias contados, mas a improvável “morte” da arte, com o dadaísmo e movimentos artísticos ainda mais recentes (e até mesmo a falta deles), na verdade, só a tornou onipresente. O conceito expandiu-se tão disforme que tenho pensado que agora está mais fácil a gente encontrar o que não é arte dentro de estímulos visuais e sonoros. O artista pode experimentar várias plataformas, inclusive a fotografia.
Perguntei à Nina Mello porque ela separava os nomes “fotógrafo” e “artista” enquanto falava, se ela não considerava o fotógrafo como artista. A discussão se tornou o cerne deste encontro.
“Eu me entendo como fotógrafa. Eu até entendo meu trabalho como artístico, mas se você me perguntar o que eu sou, eu sou fotógrafa. Eu acho que isso está mudando, por conta do meu trabalho que também vem mudando. Tem o fotógrafo artista e o artista fotógrafo. Existe uma diferença, mas não um demérito do que não é arte”, diz a fotógrafa, reforçando o papel fundamental do fotojornalismo e da fotografia documental. “Eu vejo uma necessidade muito grande de classificar as coisas como arte. E pode não ser arte e ser muito bom”, complementa.
Nina Mello observa como a fotografia documental tem ganhado as galerias, não como se ali já não fosse o seu lugar. “Eu só me questiono se precisa chamar de arte. Ela vem ocupando o lugar que é dela, sempre foi da fotografia”, avalia. “Não consigo separar a história da fotografia da história da arte, acredito que elas se amalgamam. Se arte é essa coisa que nos movimenta, nos suscita, nos desloca, nos toca, que cria possíveis espessuras da realidade, e a fotografia está neste repertório plural, nos envolvendo e nos levando à diversas significações de possíveis realidades em narrativas poéticas, não consigo separá-la da arte.”
A partir do momento em que se dá o “evento”, vai para a galeria, esse processo não faz com que necessariamente ela seja conceitualizada como arte? É o lance do óculos de grau deixado pelo adolescente no chão do MoMa (Museu de Arte Moderna) de São Francisco. A partir do momento que aqueles óculos estão inseridos no contexto da galeria, eles passam a ser visto como uma peça de arte, deixando as pessoas curiosas, que, ao percebê-los, param, fotografam e passam a refletir.
“Precisa ser arte para ter valor?”
O olhar de quem faz a foto é reflexo dele mesmo. “Se colocarem nós três para fazer aquela imagem, cada um iria fazer com um olhar diferente. Tem os dois lados da moeda e não que tivesse o certo e o errado. Eu posso chegar, perceber uma luz e fazer uma coisa clara, ou posso procurar um viés mais sombrio. Influencia nosso momento, se estamos bem conosco, com a vida, com o externo. É sentimento”, diz Leo Costa.
Se é sentimento transformado em algo, já tenderíamos a dizer que é arte. “E como você não vai valorizar o fotojornalismo do Evandro Teixeira, por exemplo? Ele está nas galerias, classificado como fotografia contemporânea, porque ele é vivo, mas é uma fotografia documental. Você vai falar que aquilo não tem valor porque não é arte? É arte. Ou não é? Ou precisa ser arte para ter valor?”, Nina indaga a si própria e a nós.
É tão difícil delimitarmos fronteiras hoje, em tudo, quanto mais em fotografias dentro de uma galeria. Mas Leonardo Costa, como fotojornalista, trouxe um entendimento pessoal sobre seu trabalho que nos ajuda a elucidar e permanecer com a dúvida, que é o grande prazer dessa discussão. “O nosso trabalho também merece espaço nas galerias. Tem trabalho que a gente faz que é arte. Mas outros, quando vamos mexer com o sentimento de um homicídio, eu acho muito perverso a gente tentar fazer aquilo ali se tornar arte. Ali é o registro documental, não cabe nem pensar, pela responsabilidade que o jornalista tem disso tudo, em tentar fazer uma arte com aquela situação. Já outras pautas, se a gente não usar do nosso lado artístico e criativo, elas não fluirão. Em alguns momentos a gente precisa estar ali, na realidade, por mais que às vezes saia alguma coisa artística. Às vezes, em um homicídio, a gente tem um elemento, uma pomba voando, fator para você acrescentar informação, é natural, não que a gente queira fazer arte. Isso é o que eu penso trabalhando, de acordo com meu sentimento.”
Registro
Construindo ou não interferindo em nada, será que qualquer clique não é por si só uma realidade? Mesmo que seja uma realidade apenas interior. Pedro opta por observar e registrar o momento, trabalha com o repertório que tem. “Fui a uma comunidade de 20 casas e uma igrejinha no meio. A gente entrou na intimidade do casal, eu e a equipe toda do documentário que estávamos filmando. Eu preferi não moldar o retrato, quando a pessoa ia fumar, e eu ia atrás e tirava foto dela fumando. Isso que é a preciosidade no registro, você não precisa montar, se está ali, está ali”, comenta ele, também ressaltando que a fotografia montada tem outro papel muito importante.
Ao longo daquela tarde, não tínhamos nem mesmo a pretensão de chegarmos a respostas, mas as exposições do JF Foto 17 nos proporcionaram um encontro, uma discussão. De repente, é isso que a fotografia pretende, nos tirar de nosso lugar e provocar novos pensamentos.