As profundezas do terror na obra de um mineiro de Caratinga
Tiago Santos-Vieira lança ‘Dança das bestas’, seu segundo livro no gênero; escritor participa neste fim de semana da Horror Expo, em São Paulo
Licantropia, religião, tráfico e uso de drogas, rivalidade futebolística, orgias, canibalismo, deep web, filmes proibidos, possessões demoníacas, organizações secretas, misticismo… E tudo começa com um interrogatório, em que um homem sem alguns dos dedos dos pés e das mãos, com tatuagens substituindo mamilos extirpados, tenta reaver a guarda da filha, encontrada em casa toda ensanguentada, falando aramaico antigo, enquanto ele, em surto, corria nu pelas ruas. Parece desagradável? É sim, em alguns momentos, mas “Dança das bestas”, segundo livro do escritor Tiago Santos-Viera, provoca aquele tipo de repugnância que, por mais chocante que seja, faz com que o leitor logo procure a página seguinte – talvez com a luz acesa, que ninguém é bobo de dar sopa para o azar.
A publicação, com o selo da C5 Livros, tem lançamento neste final de semana na primeira edição da Horror Expo, feira que teve início sexta-feira (18) em São Paulo e prossegue até este domingo (20), reunindo nomes de destaque no terror/horror, seja no cinema, TV, séries, literatura, games, serviços de streaming, quadrinhos, música e cultura pop em geral. O escritor, natural de Caratinga e que voltou a morar em Juiz de Fora, conta que ele e a editora foram selecionados pela organização do evento para participar da feira, o que provocou um lançamento antecipado do livro.
“Já tinha um cronograma planejado para lançar aqui, talvez em Brasília porque morei muito tempo lá, também Caratinga… Aí surgiu a Horror Expo e decidimos tentar, sendo que o livro não estava pronto. Foi uma correria total, porque a minha atual editora é um projeto novo, e tinham feito nada no segmento. Desenvolvemos tudo juntos: projeto gráfico, capa, cor, miolo, e isso numa correria por conta do prazo da feira. O livro, em termos de revisão, estava pronto há cerca de um mês, porém a finalização foi uma ‘correria de jornal’ para fechar a edição. Mas deu tempo, tudo ficou pronto uma semana antes do evento.”
Sobre participar da Horror Expo, que tem entre suas atrações a pré-estreia do longa “Zumbilândia: Atire duas vezes”, Tiago acredita que será não apenas chegar lá e colocar seu livro num espaço para ser colocado à venda. “Por ser a primeira edição, sinto que foi mais um convite para trabalhar junto do que só para participar, e é uma moral que nos deram, afinal é o meu segundo livro. Acho que todo mundo está trabalhando junto para colocar o gênero num patamar legal, é um ‘vamos juntos, vamos abraçar esse evento’. Nosso segmento é pequeno, mas unido; não chega a ser marginal, mas corre em paralelo ao mercado literário tradicional”, diz.
Terror com os pés no chão
Sem querer entregar muito mais do que já foi escrito a respeito de “Dança das bestas”, o livro de Tiago Santos-Vieira tem situações e personagens capazes de provocar incômodo no leitor, ainda que a curiosidade seja mais forte por conta da forma como a história é contada e das figuras ali retratadas, que o escritor diz desenvolvido por meio de referências próximas.
“Os personagens têm muita coisa comportamental de gente que conheço, que cresceu comigo, só que de forma extremamente exagerada”, afirma. “Não jeito: qualquer coisa que você vá escrever, por mais que tente se afastar, na verdade está falando de você, do seu meio, das suas vivências, mas com uma roupagem cinematográfica. ‘Se essa pessoa fosse assim, se fosse um assassino, se esse cara estivesse fazendo um filme…’ A minha literatura, em questão de elementos, é muito do meu mundinho, extrapolado para as páginas através de um filtro. Mas algumas coisas eu não cito, ou amenizo, há temas que acho que não valem a pena, não vou escrever nada para ser um tiro no pé. Meu fetiche tem limite. Acho que já erro na mão, mas exagero com delicadeza, com alguma responsabilidade. Querendo ou não, meu livro é entretenimento.”
Influências fora do meio literário
Por ser escritor, à primeira vista o leitor poderia imaginar que Tiago Santos-Vieira busca inspiração em outros autores. No caso dele, porém, uma das influências é o chamado jornalismo gonzo, que ajudou a refinar sua escrita jornalística em veículos como o jornal “Diário de Guarulhos” e revistas como “TPM”, “Rolling Stone” e “Riders”, além da televisão e cinema. “Em 1989, se não me engano, iniciaram o projeto de TV a cabo no Brasil, e Caratinga, que mais parece a Hawkins de ‘Stranger Things’, foi uma das primeiras cidades, com São Paulo, Campinas, Ribeirão Preto, mesmo tendo só 80 mil habitantes. Tive acesso a muita informação desde essa época, então minha internet era a TV. Digo que conheço o mundo inteiro pelos livros e pela televisão”, explica, acrescentando que isso faz com que muitos imaginem que ele conheça lugares nos quais jamais colocou os pés.
“Teve gente lá em Brasília dizendo que tem um pedaço da família no País Basco (Espanha, onde se passa parte da história do livro), perguntando quando eu voltaria lá, se já tinha visto isso ou aquilo, e eu dizia ‘nunca fui ao País Basco’, ‘Ah, está zoando, mas você descreve o negócio de um jeito muito sombrio’… Cito muita referência, locais que não conheço, mas não me sinto um charlatão por isso, pois o fato de não conhecer me causa um pânico por poder errar, citar algo que não existe, uma referência imprecisa. Até agora não aconteceu.”
Para não escorregar no texto, Santos-Vieira costuma dizer, por brincadeira, que tem “uma equipe” para ajudá-lo. “Não escrevo sem sondar dois amigos de infância de Caratinga, que são médicos, não mato ninguém sem consultar os caras. Tenho uma amiga que é bióloga, e aos 47 do segundo tempo, com o livro indo para a gráfica, descobri que, na taxonomia, os nomes das espécies não levam assento, e havia acentuado o nome de uma espécie de animal que criei para o livro. Também tenho uma amiga advogada, um amigo policial, então há as pessoas que consulto. O que gosto de criar são novelas do Manoel Carlos no inferno, sacou? (risos) Aquela miscelânea, aquele monte de personagens, tudo entrelaçado, e no final todo mundo casa, tem uma Helena (risos).”
Ele também fala das influências da sétima arte. “Eu também bebo do cinema. Você vai ter nos meus livros muito mais ‘O exorcista’ filme do que ‘O exorcista’ livro, apesar de não ter nada de terror espiritual neles, pois puxo mais para o terror comportamental, o suspense, o thriller psicológico. Há muito mais das adaptações cinematográficas da obra do Stephen King que propriamente dos livros. Também posso citar filmes como ‘A Bruxa’, ‘Hereditário’, filmes comportamentais que trabalham mais com a maldade do que o espiritual. O M. Night Shyamalan eu amo e odeio (risos), mas quando ele acerta, eu sou fascinado, é um dos meus diretores favoritos.”
O terror no Brasil
Quanto à presença da literatura de terror no Brasil, Tiago vê não somente um público fiel, mas um bom momento para o gênero – ainda que o mercado editorial tenha sofrido um baque com a crise que afetou as grandes livrarias. “O terror engloba suspense, thriller psicológico, o pós-terror, literatura vampiresca, o horror, e sempre teve essa história de ‘agora vai’, e nunca ia.
Mas acho que agora chegou o momento. Temos autores como o André Vianco, Santiago Nazarian, Raphael Montes”. Ele acredita que o terror sempre esteve em nossa literatura, porém disfarçado. “Se pegar ‘Incidente em Antares’ (Érico Veríssimo), você tem uma galera que levanta do caixão e sai andando pelas ruas, e isso é zumbi. ‘O coronel e o lobisomem’, do José Cândido de Carvalho, primeiro livro que li graças à minha avó, me deixou tenso, nervoso, e vejo como um terror agrário, sertanejo”, exemplifica, antes de lembrar outro nome importante.
“O Ariano Suassuna tem o capeta em tudo, um diabo agreste que vai lá e barganha pactos em troca de sanar a fome, que tenta seduzir, usar a miséria da região em troca de alguma coisa. E causa algum pavor. E de onde ele tirou esse diabo? Da literatura de cordel. Tive um encontro pessoal com ele, alguns anos antes de falecer, numa entrevista na Feira do Livro de Guarulhos. Aquilo mudou muita coisa para mim. Conversamos muito, sobre tudo, inclusive sobre os Diabos de suas obras. É uma coisa que sempre esteve na nossa literatura, mas teve uma gênese diferente em relação à América Latina, que tem a tradição do realismo fantástico que te conduz à ficção e ao terror.”
Contos, crônicas e um projeto sentimental
Tiago deixou o jornalismo para trás há alguns anos, após passar em um concurso público, o que não quer dizer que deixa suas palavras espalhadas por aí unicamente na literatura. Ele também publica contos e crônicas no blog da marca de camisetas Chico Rei. “Conheço o pessoal desde quando trabalhávamos no Zine Cultural, aí quando voltei para cá recebi o convite para escrever, sem periodicidade. O mais legal é o tratamento que dão para o texto. Eu envio, eles leem, pegam todo esse know-how de criação e colocam umas ilustrações que são massa. Tem uma ilustradora que já é especialista nos meus textos, aí comento ‘que massa, você mora dentro da minha cabeça’. É muito legal ter uma pessoa que pega uma coisa sua, interpreta, te mostra de novo e consegue te surpreender.”
Além dos contos, crônicas e livros de terror, Tiago Santos-Vieira ainda publicou um projeto especial, dedicado ao público infantil, intitulado “As aventuras do Super Careca”, publicado ano passado e que ajudou um parente a encarar um momento muito difícil. “Tenho um primo que teve um câncer linfático; estava em Brasília na época, e quando soube da notícia pensei ‘o que posso fazer? Nada, né?’.
Mas aí pensei: ‘vou escrever uma história para esse moleque’, e mandei para ele, que adorou. Depois fez os tratamentos, ficou ótimo, está há três anos em remissão, o moleque está zero bala. Aí, um tempo depois, a mãe dele e uma tia, que são professoras, sugeriram fazer um livro, mesmo que fosse uma coisa menor, ‘a escola tem um projeto com uma editora, vamos fazer?’. Aí eu peguei essa história, dei uma repaginada, coloquei outro final.”
Na história de Tiago, o protagonista descobre um caroço no pescoço e é levado para o Hospital dos Carecas – que, na verdade, era uma escola de super-heróis. “O Super Careca era um alienígena que chegou dentro de um Kinder Ovo, os pais comeram o chocolate e ele apareceu no copinho. No hospital, ele descobre que o caroço, na verdade, é o poder dele querendo sair, e agora eu termino a história mostrando que, no lugar da careca, ele está com um belo topete, pois o cabelo cresceu de novo. Foi distribuído na família, escola; era um negócio pequeno, mas com valor sentimental maior que dos outros livros.”