Qualquer coisa dá nó
Estava tudo solto, pelas paredes, por casas e prédios. César Brandão armou uma arapuca e capturou os próprios trabalhos, dispersos ao longo dos anos, em coleções particulares de Juiz de Fora e outras cidades. À emboscada o artista deu o nome de “Furto proibido: arapuca”, exposição que inaugura nesta quarta, às 19h, no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, com curadoria de Eduardo Brigolini e Ione Ribeiro. O título faz referência à instalação que o artista reserva para as paredes centrais da Galeria Celina Bracher. A instalação, por sua vez, faz referência a outra montagem, realizada no início da carreira, em 1983, no Parque Halfeld. Já a interferência na praça central da cidade fazia referência aos primórdios da arte, tanto pela presença das cores primárias quanto pela estrutura precária, como que “das cavernas”. As referências, tantas, deram um nó? Pois é esse o propósito de César Brandão.
Aos 60, completos na última segunda, 17, Brandão é enfático ao defender o princípio da obra de arte: “qualquer coisa”, termo com que abre sua mostra. Na instalação que o artista apresentou no coração da cidade, na década de 1980, três pedaços de madeira receberam pequenas pinturas (em vermelho, amarelo e azul, cada uma com uma cor). Colocadas sobre um veludo, as peças serviam de base para um barbante que dava volta pelas árvores e por toda a praça. “Fiz uma teia de aranha. Um desenho tridimensional no espaço físico da cidade. A linha saiu do papel e ganhou o espaço”, conta.
Na edição de 8 de janeiro de 1983, a Tribuna publicou uma grande reportagem dando conta da repercussão das pessoas e da permanência de uma obra num dia de intensa chuva. “Da foto que foi publicada no jornal (de autoria de Márcio Assis) fiz um monte de postais, de Arte Correio. Graças a ela fui para a Bienal, porque enviei para um monte de gente e chegou até um galerista, o Paulo Figueiredo, que mostrou para a Sheila Leirner, e ela me ligou pedindo que eu montasse uma instalação na Bienal”, recorda-se Brandão.
Tanto o postal, quanto a matéria jornalística, ganham status de arte na nova exposição. Alimentando uma leitura retrospectiva, dividem a mesma parede com o registro da performance de Brandão na 19ª Bienal de Arte de São Paulo, de 1987. “Contra o canto das sereias” mostrava coragem ao ocupar um grande espaço na maior mostra de arte do país, em tempos de eliminação dos ares repressivos de uma ditadura que havia acabado de se encerrar. “Discutia o caos e a fragilidade, que tinha a ver com o tema da Bienal, que era ‘Utopia versus realidade’. Usei materiais brasileiros, como a bucha, os ovos, que apodreceram, e a instalação teve que ser interditada”, ri.
Logo ao lado de uma das peças da mostra, Brandão apresenta sua “GambiWARra”, uma peça que discute o natural versus o fabricado, numa estética muito próxima da peça que ocupou o Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, local que, pela primeira vez no Brasil, recebeu um grande número de obras de Marcel Duchamp, uma das referências de Brandão. Para ele, a arte começa com o homem das cavernas e seus desenhos e utensílios. Passa pela racionalidade de Leonardo da Vinci e pela atualização dessa mesma racionalidade, feita por Duchamp, o autor de obras que partiam de urinóis, rodas de bicicleta, dentre outros objetos comuns, ressignificando-os na seara da arte. “Qualquer coisa” serve a César.
Diz nada e diz tudo
Retomando a fatídica instalação do Parque Halfeld, César Brandão decide lançar mão, uma vez mais, do barbante. Mas seus planos eram outros. O artista apresenta um projeto no qual demoliria as paredes centrais da galeria, manteria os escombros no local e isolaria a área, para apreciação do público. Impossível, obviamente. O artista, então, expõe o projeto e circunda a área com barbantes. Três quilos! “Adoraria derrubar, mas não posso”, diverte-se ele. “E já que não posso demolir, isolo. É poético e faz pensar”, defende um artista sempre referenciado e nunca distante da história. Como seus “rabiscogrifos”, nome que deu ao traçado que, num dos quadros da mostra, parte das mãos de Picasso.
A única vez em que não havia nenhuma referência está exposta, também, na exposição retrospectiva. Trata-se de um desenho elaborado em 1966, portanto, aos 10 anos. “Esse desenho é muito ruim. Meu tio mandou para mim agora e eu fiquei impressionado”, conta ele, que emoldurou o trabalho, conferindo-lhe, uma vez mais, status de arte. O título: “Pá, enxada e regador”. Segundo Brandão, ainda que infantil, a imagem já denunciava um elo com Marcel Duchamp. O desenho a elencar os três objetos via a estética do comum. Inspirado no primórdio, ele executa duas obras inéditas: “Antes da queda de braço” e “Pau na máquina”, ambas subversões de uma cavadeira. “É um ready made mesmo, era uma cavadeira que separei e recriei”, aponta, para logo resgatar a frase que encerra a mostra: “nada a dizer”.
“É qualquer coisa que não está dizendo nada”, ri Brandão. Para as outras pessoas pode até não dizer nada, mas, para você… “É a minha vida. Arte, para mim, é 24 horas”, completa ele. “Meu trabalho é totalmente racional. As ideias surgem e vou desenvolvendo. Não é intuitivo. Não sou um primitivo. A brincadeira que faço com os títulos mostra que é racional. Qualquer coisa, para mim, é matéria para a arte. Da ‘Merda d’artista’ (potes no qual o artista inseriu as próprias fezes e expôs), do Piero Manzoni, até uma pedra para esculpir, uma tela, um paralelepípedo, um barbante. E tudo ligado à ideia de efêmero, precário, pindaíba, gambiarra.” Dá um nó.
‘FURTO PROIBIDO: ARAPUCA’
Exposição de Cesar Brandão
Abertura nesta quarta, às 19h. De terça a sexta-feira, das 9h às 21h, e sábados e domingos, das 10h às 18h. Até 6 de novembro
Centro Cultural
Bernardo Mascarenhas
(Avenida Getúlio
Vargas 200)