Fabrício Marques lança biografia do jornalista Wander Piroli em JF

Formado em jornalismo e iniciado na literatura em Juiz de Fora, autor, nascido em Manhuaçu e radicado em Belo Horizonte, também lança livros de poesias


Por Mauro Morais

19/08/2018 às 10h00

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Wander Piroli retorna às prateleiras com reedições de selo paulista e biografia (Foto: Arquivo pessoal/Wander Piroli)

Nos textos circulava sangue. Havia veias. Ainda que retratasse a morte. E a vida brotava na literatura de Wander Piroli pelo tato com a realidade das redações jornalísticas. Em 1972, editor do “Estado de Minas”, colocou-se a escrever uma nota sobre um assassinato, gesto incomum para o homem responsável por pensar e conduzir o caderno policial do jornal de Belo Horizonte. Noticiou lirismo num fato de onde escorria sangue: “Que no dia 18 de janeiro, no lugar denominado Suaçuí Pequeno, o lavrador José Pereira Bento chegou em casa e procurou saber de sua mãe, Efigênia Bento, se a comida estava pronta; que a mãe respondeu não está e atirou-lhe uma colher de ferro, sem acertar o alvo, saindo em seguida da cozinha e indo à fonte d’água com uma panela de ferro na mão; que o filho José ficou ofendido, pegou um pedaço de pau da lenha Jacaré que estava ao lado da fornalha e, ato contínuo, também saiu da cozinha e foi atrás de sua mãe Efigênia; que no trajeto já a encontrou de volta, trazendo a mesma panela, porém mais limpa, e que ela — sua mãe — atirou-lhe a panela, mas não teve sorte pela segunda vez; que o filho José olhou bem para o pedaço de pau e não teve dúvida: vibrou-o contra sua mãe Efigênia, atingindo-a no meio da cabeça, na face lateral esquerda e nas regiões frontal e temporal; que a mãe, ao receber os golpes, caiu no terreiro, esperneou e morreu”. Dois anos depois, o fato transmutou-se no conto “De um relatório policial”, presente em “A mãe e o filho da mãe”, um dos mais cultuados livros do jornalista e escritor, que acaba de ser biografado em “Wander Piroli: Uma manada de búfalos dentro do peito” (Conceito Editorial), título da coleção Beagá Perfis, escrito pelo também jornalista e escritor Fabrício Marques, que faz o lançamento em Juiz de Fora nesta segunda, 20, às 19h, no Bar da Fábrica.

Escrever para Piroli era exercício laborioso, que envolve leituras e cortes, e também gesto natural, para onde escoa o contato com o mundo. “A invenção é muito importante para o escritor, inventar o que existe”, disse em 1995, sete anos antes de sua morte, em entrevista ao jornal “Felicíssimo”. “A visão dele como escritor foi benéfica para a atividade dele como jornalista e vice-versa. Ele usou nos textos literários muito do que viveu nas redações. Colecionou muitas histórias e acompanhou muitos dramas de assassinatos e espancamentos, que são muito fortes no Brasil, e foram parar nos livros dele”, comenta o biógrafo, chamando atenção para o observador genuíno. “Ele nasceu e morou no bairro Lagoinha, uma região muito conhecida em Belo Horizonte por ser endereço de operários e também dos boêmios, com muitos marginais, prostitutas, uma fauna noturna, muito presente. Ele ainda criança conviveu com isso. E quando foi ser editor de polícia, foi ter outro olhar para o que já havia presenciado”, aponta Fabrício.

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Foto: Reprodução/Fabrício Marques

No já distante 1963, Piroli começou sua carreira como editor, no jornal “Binômio”, cuja sucursal em Juiz de Fora teve, por bastante tempo, como editor o jornalista Fernando Gabeira. “Em todos os jornais, o Piroli mostrou ter o dom para editar, que é um trabalho invisível, que só aparece quando é para criticar, dizendo que foi mal editado. Quando é bem editado, o crédito acaba indo para o repórter, fotógrafo ou diagramador. Mas esse papel do editor é de ter uma visão de mundo. O Piroli foi um dos primeiros editores do país a trazer pautas atuais para as páginas dos jornais. No início dos anos 1980, quando ninguém falava das minorias, de meio ambiente, ele já estava abordando isso, num ângulo humano. E os títulos que ele fazia eram geniais”, defende Fabrício, cujo trabalho de pesquisa demonstra como Piroli defendeu com unhas e dentes publicações acerca do “Caso Defensor”, sobre um operário torturado por policiais durante a ditadura, que acabou rendendo o Prêmio Esso de Jornalismo ao repórter Geraldo Elísio. “Nem a direção do jornal queria, e ele bancou, falando: ‘Depois que publicar, a gente vê o estrago!’. Ele dava segurança para sua equipe, tomando partido da notícia. Isso soa romântico, mas faz dele uma referência para atitudes numa redação jornalística”, conta o biógrafo.

Com o baú da família aberto, além do agigantado acervo de Piroli na Universidade Federal de Minas Gerais, Fabrício iniciou o trabalho que tomou seu 2017 e o fez mergulhar em entrevistas, reportagens, livros e mais livros. Também realizou 55 entrevistas. E só encontrou um homem querido. “Levei para o editor, que me perguntou: ‘Será que não consegue encontrar ninguém que não gostasse dele, para não ficar um livro muito laudatório?’ Mas ele era um personagem muito carismático, um personagem que faz falta no Brasil de hoje, e um jornalista muito ousado, destemido e corajoso. Como escritor, ele, ao mesmo tempo que tinha muito rigor com a escrita, não levava a literatura tão a sério. Ele colocava amigos e família em primeiro lugar. Preferia pescar a escrever. Sempre que a vida solicitava a presença dele, ele deixava a literatura de lado. Ao mesmo tempo, quando escrevia era para valer”, observa Fabrício, ressaltando uma das principais características de Piroli: a precisão.

Segundo Fabrício, seu biografado conseguiu resolver a relação com a linguagem de uma forma muito econômica. “Os textos dele são muito sintéticos, ele consegue colocar uma história, um mundo de sentimentos e emoções, em poucas palavras. Ele dizia que tinha a pretensão de, no futuro, conseguir escrever um texto só com substantivo, verbo e predicado”, conta, citando, ainda, outro valor do escritor, o humanismo que carregava em seus textos. De personalidade generosa, Piroli não carregava na mala a vaidade de grande parte da intelectualidade. Publicou em pequenas editoras, sem projeção nacional. Mais tarde, teve todos os seus títulos transferidos para a Cosac Naify, que acabou por encerrar as portas. Após a conjunção de fatores que o levaram a ausentar-se das prateleiras, o jornalista e escritor retorna à cena na completa e sensível biografia de Fabrício Marques e nas reedições da editora Sesi-SP.

Um poeta que comunica

Com Wander Piroli, Fabrício Marques compartilha mais que o testemunho da vida, mas, principalmente, a vida partilhada entre o jornalismo e a literatura. Na história de Fabrício, Juiz de Fora é o ponto de partida das duas paixões. “Sempre cito uma frase do Paulo Mendes Campos: ‘Todo homem carrega no peito duas cidades mortas’. Falo brincando que carrego três cidades vivas: Manhuaçu, Belo Horizonte e Juiz de Fora. Das três cidades, aí é a que morei menos tempo, foram seis anos, mas um dos melhores períodos da vida”, comenta ele, que, graduado em Comunicação Social pela UFJF em 1991, partiu para Belo Horizonte no final do ano seguinte. Na bagagem, carregava dois pequenos livros, “Futilidades púbicas”, sua estreia, com projeto gráfico de Knorr, e convite produzido pela artista visual Valéria Faria (atual pró-reitora de Cultura da UFJF) e “Marquises”. “Foram livros despretensiosos, estava começando e conhecia muito pouco de literatura e poesia. Eram textos mais intuitivos, impressionistas. Não os incluo em minha bibliografia oficial, mas são livros por meio dos quais acabei conhecendo outros poetas”, diz, lembrando-se de tê-los enviado, por Correios, para Edimilson de Almeida Pereira e Iacyr Anderson Freitas, contemporâneos de sua admiração.

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Fabrício Marques começou a escrever poesias nos tempos de faculdade, quando morava em Juiz de Fora, e já lançou quatro obras do gênero (Foto: Divulgação/João Marcos Rosa)

Na capital mineira, iniciou uma trajetória acadêmica, com mestrado e doutorado, começou a dar aulas e a trabalhar como jornalista. “A poesia ficou em segundo plano”, conta o autor de “A máquina de existir” (Editora Pedra Papel Tesoura), “oficialmente” seu quarto título de poesias. “Fiquei um tempo elaborando o conceito dele, mas, para escrever, levei seis meses. Isso foi em 2014, de janeiro a julho. Lembro que saía para caminhar antes de ir trabalhar, e os poemas iam aparecendo. Foi uma época bem frutífera e um processo bem prazeroso. Eu ia dormir pensando que caminharia no dia seguinte e escreveria mais. Há escritores que têm a disciplina de escrever todos os dias, mas eu sou mais caótico. Escrevo quando aparece o conceito e, num período concentrado, me disciplino até concluir um livro”, explica o autor de “Uma cidade se inventa” (Scriptum), lançado em 2015, e finalista do Jabuti no ano seguinte, no qual investiga entre a cidade que o acolheu e as palavras.

“Belo Horizonte, que é historicamente nova, sempre teve escritores. É uma das raras cidades do mundo que já nasceu com o testemunho de poetas, contistas, romancistas, cronistas. Isso marcou muito a vida da cidade. Tem lugares como o Centro, a Pampulha, a Lagoinha que são sempre citados em livros de escritores de várias gerações, tanto os canônicos, como Carlos Drummond de Andrade, quanto os contemporâneos”, observa. “Moro aqui há mais de 25 anos. Ainda que a literatura e o jornalismo, atividades com que mais lido, tenham sido colocadas em crise nas últimas décadas, aqui a relação entre os livros e a cidade é muito forte. Belo Horizonte tem uma capacidade autodestrutiva, de não preservar seu patrimônio, sua história. Existem iniciativas de preservação. Procuro, nesse contexto, pensar na importância de estar em contato com as pessoas, procurando interferir, de alguma forma, na vida da comunidade em que vivo. Escrevendo livros, fazendo reportagens, ou dando aulas, tenho tentado interferir na vida da cidade”, acrescenta ele, que, comemorando os 20 anos de “Samplers”, sua estreia, ganha, este ano, uma antologia espanhola reverenciando toda a sua produção.

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Foto: Reprodução/Fabrício Marques

Como seu biografado Wander Piroli, Fabrício Marques surge em “A máquina de existir” apresentando uma literatura precisa, palatável ainda que complexa. O jornalista não lhe foge do corpo e o poeta quer comunicar, parece defender com a obra. “A poesia não precisa ser hermética”, concorda Fabrício, para logo concluir: “Ela precisa comunicar, chegar ao leitor, sem abrir mão do rigor. Esse poema ‘Minha humanidade’, que abre o livro, tem uma linguagem bem acessível, mas com um tom filosófico e metafísico. Apesar de ter sido escrito em 2014 — foi concebido depois das jornadas de junho de 2013, de uma tomada de consciência política da sociedade brasileira —, ele reflete sobre a nossa condição de estar no mundo e no agora. Pensava: como podemos nos relacionar num país em certo sentido periférico, com tantas questões a serem resolvidas?”

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“PIROLI: UMA MANADA DE BÚFALOS DENTRO DO PEITO” E “A MÁQUINA DE EXISTIR”
Lançamentos de Fabrício Marques, nesta segunda, 20, às 19h, no Bar da Fábrica (Av. Getúlio Vargas 200 – Centro)

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