‘Tenho confiança no meu gosto’


Por Mauro Morais

19/03/2017 às 07h00

Ainda que teorias deem conta de trajetórias históricas e pesquisadores arrisquem dizer do presente, o mercado de arte é um tanto subjetivo. Portanto, injusto. Talvez um dos grandes méritos de Joaquim Paiva seja justamente o de fazer justiça com talentos invisíveis para uma lógica que, partindo das artes, deixa-se absorver pelo comércio. Tanto em seu trabalho autoral quanto em sua coleção, considerada a maior do Brasil, o artista de 70 anos congela o ponteiro do relógio. Em suas imagens, resgata retratos e cliques passados, recorre aos álbuns de família e insere-os nos vestígios da memória mais íntima. Surgem, então, registros que duelam entre os tempos, querendo sempre dizer da saudade. Já em sua coleção, diz de uma fotografia vigorosa extraída dos jornais e também de uma geração que retratou, como hobby, um país de formas precisas, modernas. Também diz de uma contemporaneidade impregnada por discursos pessoais, pela subversão do que foi feito ontem e, principalmente, pelas dicotomias que a própria fotografia dá conta de reunir.

Maior colecionador do Brasil, fotógrafo Joaquim Paiva abre a edição deste ano do Festival de Fotografia de Tiradentes
Maior colecionador do Brasil, fotógrafo Joaquim Paiva abre a edição deste ano do Festival de Fotografia de Tiradentes

Dono de um gosto que se tornou padrão, Joaquim Paiva fez de seu recorte uma das mais prováveis teorias acerca do desenvolvimento da fotografia no Brasil e no mundo. Em seu acervo, hoje parcialmente doado em regime de comodato para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), Paiva faz encontrar nomes como a da reverenciada norte-americana Diane Arbus, conhecida mundialmente, e também o do maranhense formado em Juiz de Fora, Roosevelt Nina, ainda pouco reconhecido apesar de seus mais de 80 anos. Com mais de três mil exemplares, a coleção é um dos temas da mesa de abertura da edição de 2017 do Festival de Fotografia de Tiradentes, que começa na próxima quarta, 22. Às 20h do primeiro dia do evento, no Centro Cultural Sesiminas Yves Alves, Paiva aborda os caminhos da fotografia, só não aponta suas predileções.

PUBLICIDADE

“Nunca apostei nas fotografias porque depois poderia vender e ter lucro”, comenta o artista e colecionador carioca em entrevista à Tribuna, por telefone. O que vale numa fotografia? O que ela tem a dizer, garante. Ainda que precise do auxílio de uma legenda. “A mim não incomoda que ela dependa da palavra. Essa relação é fantástica. Mas quando há um desequilíbrio, quando ela é mais palavra que imagem, ela perde seu maior valor, que é a visualidade.”

 

Tribuna – O que norteia as escolhas que faz para sua coleção?
Joaquim Paiva – Critérios como qualidade do trabalho e comprometimento do fotógrafo para com o que faz. Na coleção tenho fotógrafos conhecidos e os que não são tão conhecidos. Sempre tive uma liberdade muito grande de fazer minhas escolhas, porque ninguém me pediu para colecionar, e eu não coleciono para ninguém, a não ser para mim. Desde 2005, quando deixei boa parte de meu acervo no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, coleciono para o museu e continuo tendo a liberdade para adquirir o que quero. Não tenho o conselho de curadores dizendo o que devo ou não adquirir, se um artista terá futuro ou não. Isso não tem a menor importância para mim. Sou uma pessoa informada e vivo no meio da fotografia há 40 anos, então, tenho confiança no meu gosto. O que não significa que eu não leve em conta a opinião de colegas e especialistas no assunto fotografia, como curadores, diretores de museu ou os colegas fotógrafos.

Na verdade, é a sua coleção que tem servido de norte ao mercado, não é mesmo?
Nunca fiz essa coleção com esse objetivo. Nunca fiz com o objetivo de dar essa entrevista. Fiz por uma paixão enorme, por uma ligação muito forte com a fotografia, com meu conhecimento e com a oportunidade que tive de participar dos festivais de fotografia, a partir dos anos 1980 no Brasil e, depois no exterior. O mercado nunca foi minha baliza. Quando comecei a colecionar, nos anos 1970, já existia um mercado, mas não o de fotografia. Hoje ele existe.

Ao longo desse período no qual construiu sua coleção, a fotografia se transformou?
A fotografia se disseminou de uma forma muito veloz. As redes sociais, os smartphones, a sociedade narcisista em que vivemos fazem com que a coisa mais importante na fotografia hoje seja o selfie, um retrato seu para dizer que esteve na Torre de Pisa. A imagem tomou um vulto, uma importância muito grande nas últimas décadas. É preciso considerar, no mercado de arte, o constante interesse pela representação, pela imagem, pelo rosto, pelo corpo, pela personalidade. Sendo assim, a técnica fotográfica permite captar o retrato, uma pessoa, de maneira muito prática, rápida e fácil. Com o aprimoramento da tecnologia, o resultado é excelente. Óbvio, então, que a fotografia acaba levando uma vantagem enorme sobre a pintura, em termos de representação da figura humana.

Mas acaba se vulgarizando, também…
Há um lado extremamente vulgar da época em que a gente vive, através da comunicação imediata, pelas redes sociais, onde as pessoas colocam muitas bobagens. Não tenho nada disso. E tenho a liberdade de ir na contramão.

Seu trabalho, assim como o de diversos artistas da contemporaneidade, baseia-se na questão da memória. O que te move?
Talvez o mais importante naquilo que faço seja retratar a memória, resgatar o rosto dos que já se foram e dos que ainda estão entre nós. A memória é a base da criação de muitos artistas, sobretudo os que usam a palavra, os escritores. Ontem mesmo, por acaso, estava revendo meus diários – pessoais, sobre o cotidiano, a vida, a fotografia, sem disse-me-disse – e encontrei-me com uma citação que copiei do Mario Vargas Llosa. Era uma entrevista dele, perguntando se ele faria psicanálise. Ele disse que não. A ideia era: “Fujo, acho perigoso, não quero”. Não que ele seja contra a psicanálise, mas é que a memória é tudo o que um escritor possui. Se fizer psicanálise, ele se livra dos conflitos, recalques, medos, dos desejos proibidos.

“Talvez o mais importante naquilo que faço seja retratar a memória, resgatar o rosto dos que já se foram e dos que ainda estão entre nós”

Existe, hoje, uma tendência às reminiscências?
Gosto muito de fazer um trabalho que tenha a ver com meus pais, as pessoas que passaram pela minha vida, os autorretratos. É uma permanente volta ao passado, aos rostos das pessoas que me cercaram. Muitos artistas trabalham assim, com a autobiografia. Anteontem foi inaugurada uma exposição aqui no Rio, do Assis Horta, um senhor de 99 anos, de Diamantina, que fotografou milhares de pessoas. Ele fez muitos retratos porque nos anos 1930 o Getúlio Vargas criou a necessidade da carteira de trabalho, que precisava ter uma foto datada, o que significou uma busca muito grande pelos fotógrafos. Aí ele foi aperfeiçoando o trabalho dele com os retratos, lindamente. Perguntei a ele, um privilégio que tive, como tudo foi preservado: ele falou que trabalhava para o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), então, tinha a mentalidade preservacionista, tinha a consciência de cultivar os rastros da história.

Até aqui já falamos de selfies e retratos históricos, tudo visto no presente. Há uma característica comum nessa fotografia contemporânea?
Ela é muito diversificada. Há muitos fotógrafos comprometidos com questões brasileiras, com a brutal desigualdade desse país e com as manifestações culturais das diversas etnias que convivem por aqui. Há, ao mesmo tempo, um grupo de artistas mais sintonizado internacionalmente, que segue as tendências estrangeiras. Isso é algo de que os artistas não conseguem  escapar, porque o mercado de arte se forma nos exemplos, da ideologia que nos vem de mercados como os dos Estados Unidos e da Europa.

Vemos, também, uma arte que transita entre linguagens, a fotografia que é pintura, que é vídeo, que é literatura. Essa é uma marca do presente?
É parte da nossa época uma interseção, um diálogo, um envolvimento da fotografia com a literatura, com a pintura, com a instalação, com o cinema. Acho muito enriquecedor fazer uma fotografia passível de ser lida nos parâmetros que usaria num poema. Isso forma uma arte aberta, que se comunica não só com outros tipos de arte, mas também com vários tipos de conhecimento.

O conteúdo continua após o anúncio

 

“Há muitos fotógrafos comprometidos com questões brasileiras, com a brutal desigualdade desse país e com as manifestações culturais das diversas etnias que convivem por aqui”

Há uma crítica generalizada e feroz à arte contemporânea que diz dos trabalhos mais conceituais prescindirem de legenda. Qual a sua opinião acerca dessa arte que carece de explicações?
Acho que é possível e pode ser muito interessante. Mas tem o seu lado negativo. Muitas vezes, há um excesso de teoria, de racionalismo, de lógica, que oprime o trabalho em si. E quando esse excesso se produz, aquilo que é a obra passa a ser simplesmente uma ilustração de um discurso teórico e já não me interessa tanto como fotografia. Já quando isso é bem realizado, e a fotografia se sustenta não apenas pela ideia, mais ou menos sofisticada, mas pela visualidade dela, pela força e beleza que tem, interessa-me. Quando há um equilíbrio entre fundo e forma, o que é o velho debate da arte acadêmica, a fotografia ganha. A necessidade da etiqueta é uma questão interessantíssima na fotografia, porque cria um confronto. De um lado está o jargão de que a fotografia vale por mil palavras. E numa época isso pode ter sido verdade, na época gloriosa do fotojornalismo, nos anos 1930, 1940, 1950 e 1960. A fotografia era a verdade, e hoje a verdade é o que está na internet. De outro lado, está a fotografia que depende de uma legenda, e isso não depõe contra ela.

De que maneira a crítica de arte norte-americana Susan Sontag, que dedicou sua vida a pesquisar sobre fotografia, e que você traduziu na década de 1980, molda seu olhar?
Na medida em que ela é muito mais que uma teórica, que uma filósofa. Quando traduzi “Ensaios sobre a fotografia” pude conviver muito com o pensamento dela e percebi que ela fala de fotografia não só com base no conhecimento filosófico que tem, mas também com base na sua vivência, morando numa cidade como Nova York, lendo jornais todos os dias, indo a museus, tendo uma relação com a Annie Leibovitz, uma fotógrafa famosa. Ela teve um relacionamento pessoal com a fotografia. Li o primeiro volume dos diários dela e fiquei fascinado. Ela fala da beleza da fotografia, fala da liberdade do fotógrafo, defendendo que ele pode construir uma obra pessoal com a visão dele sobre o mundo e não retratando, apenas, o mundo.

“Há um excesso de teoria, de racionalismo, de lógica, que oprime a fotografia”

 

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.