Pesquisador reconta a história da República até os dias de hoje

‘As práticas republicanas precisam ser valorizadas’, diz Jorge Ferreira, historiador, pesquisador e professor em entrevista à Tribuna


Por Mauro Morais

18/11/2018 às 07h00


Enquanto giram os ponteiros do relógio, está sendo escrita a história. Mas não sistematizada. Para que isso aconteça, é preciso algum distanciamento temporal. Não muito. O quinto volume da coleção “O Brasil Republicano” (Editora Civilização Brasileira), que acaba de chegar às prateleiras distancia-se de seu recorte em apenas dois anos. A coletânea de artigos retrata a Nova República, de 1985 a 2016. Para os organizadores, Lucilia de Almeida Neves Delgado e Jorge Ferreira, encerra-se um ciclo na República brasileira, sobre a qual desenvolveram as outras quatro edições da coleção.

Lançado em 2003, o conjunto de livros estancava no regime militar. O primeiro volume, “O tempo do liberalismo oligárquico”, retrata a Primeira República (1889 – 1930); o segundo aborda os 15 anos seguintes sob o título “O tempo do nacional-estatismo”; o terceiro volume, “O tempo da experiência democrática”, engloba os 19 anos que se seguiram a 1945; o quarto, por sua vez, trata da ditadura militar e se encerra em 1985. Os historiadores e professores (ela aposentada pela PUC Minas e pela UFMG, ele, titular na UFF) encararam o desafio de descrever os anos recentes. Retrato de uma escrita em construção. “Essa coleção é composta de dez a 12 capítulos por volume, de temas amplos e gerais, resultado da pesquisa de professores universitários, de instituições federais e estaduais e de institutos de pesquisas. Eles tratam de temas amplos, que interessam não apenas estudantes de história, mas o grande público. Temos retratada a Revolução de 1930, o golpe de 1964, o governo de Juscelino Kubitschek, a crise da ditadura, dentre outros. Essa coleção, ao longo do tempo, foi sendo muito utilizada por alunos de graduação e pós-graduação das ciências humanas. Chegamos à sétima reimpressão”, comemora Jorge Ferreira, desde janeiro professor visitante do programa programa de pós-graduação em história da UFJF.

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Volumosa, a atual coletânea de mais de 500 páginas reúne 13 ensaios sobre a história do presente. O livro parte de um texto sobre o desafio de escrever sobre os anos recentes, e passa ao artigo sobre a transição democrática liderada por José Sarney. Em seguida, retrata o Plano Cruzado, as eleições presidenciais de 1989, a Era Collor, a reestruturação produtiva e o mundo do trabalho na década de 1990, o Plano Real e o governo de Fernando Henrique Cardoso, o MST como um dos principais movimentos sociais da Nova República, a cultura nesse período, a cena do rock nas década de 1980 e 1990, as relações internacionais nas três últimas décadas, os governos petistas e, por fim, a cidadania desde 1988. Professores do departamento de história da UFJF, Cláudia Viscardi e Fernando Perlatto assinam o último texto, “Cidadania no tempo presente”, no qual abordam os desdobramentos da atual Constituição. Além de tratar do ofício um tanto corajoso do historiador, Jorge Ferreira, em entrevista à Tribuna por telefone, ressaltou, na semana em que o país celebra os 129 anos da Proclamação da República, o caminho um tanto tortuoso do Brasil para dar voz ao público.

Jorge Ferreira defende que a experiência da Nova República, iniciada em 1985 e fortalecida com a Constituição de 1988, encerra-se em 2016, com a crise política que destituiu Dilma Roussef da presidência (Reprodução/ Arquivo pessoal)

Tribuna – Qual motivo de retomar a coleção com esse quinto volume sobre as décadas recentes?
Jorge Ferreira Passados 13 anos do lançamento, a editora aceitou fazer uma reformulação em toda a coleção. Os autores tiveram a oportunidade de revisarem seus capítulos. Nesse tempo, muita coisa já havia sido produzida. Também procuramos suprir algumas lacunas que ficaram em alguns volumes, como, por exemplo, sobre a relação internacional do país. Na Primeira República faltava um capítulo sobre isso, como também faltava no terceiro volume, da experiência democrática, um capítulo exclusivo sobre o governo Vargas. Assim, surgiu a proposta de publicarmos o quinto volume, inédito, que chamamos de “O tempo da Nova República: Da transição democrática à crise política de 2016”, que procura cobrir, em vários temas, o que o Tancredo Neves batizou de Nova República. O livro é um panorama sobre esse período, enfocando várias dimensões dessa época, da história econômica, social e cultural.

Qual é o lugar da Nova República em nossa República?
Vemos de maneira muito positiva essa experiência, porque a Constituição de 1988 ampliou imensamente os direitos sociais, até então inéditos na sociedade brasileira. Foi um período de avanço da cidadania, dos direitos das minorias, dos direitos das mulheres. Nesse sentido, a Nova República foi uma experiência muito interessante, como também foi positiva em termos políticos, mesmo com todos os problemas que os regimes democráticos apresentam. O calendário eleitoral foi cumprido, as oposições venceram – quem era oposição ganhou eleição -, houve imprevisibilidade eleitoral, o que é típico de regimes democráticos. Ainda houve avanços econômicos. A sociedade brasileira passou a perceber a importância do fim da inflação, deixando de entender a inflação como um elemento positivo para o desenvolvimento, e também valorizou o crescimento econômico. Todo o aprendizado desse período é positivo.

É comum ouvirmos que o Brasil não superou a ditadura. Você concorda?
Grande parte dos estudiosos do tema concordam que a transição política brasileira foi diferente das outras do Cone Sul – Chile, Argentina e Uruguai -, onde os responsáveis pelas ditaduras tiveram que responder pelos seus atos, e o poder civil se impôs sobre o poder militar. No caso brasileiro, o regime militar impôs uma anistia ao Congresso Nacional, na qual incluía os chamados crimes conexos, uma invenção que não pune os agentes de estado que praticaram atos de tortura. Isso permitiu que os militares saíssem ilesos daquele processo e deu a liberdade para que parlamentares e outros políticos elogiem o regime militar e torturadores, o que é inadmissível em regimes que se querem democráticos.

Também ouve-se bastante sobre uma imaturidade da República brasileira, que com muitos percalços completou 129 anos. Porque ainda não atingimos a maturidade?
É um processo em construção. As ideias de República e de democracia vão sendo erguidas ao longo do tempo. É um aprendizado. Nos anos 1930, os trabalhadores aprenderam o que eram os direitos sociais. Até então não sabiam o que era isso, ainda que lutassem por esses direitos. Não sabiam como usufruir desses direitos. Também aprendemos que votar é bom e pode ser uma avanço para a sociedade. Essas coisas são aprendidas. No Brasil há algumas dificuldades, como a de valorizar a democracia. Há grupos e setores sociais que veem a democracia como um empecilho, veem o debate político e as divergências como impedimento para o avanço econômico. Também há uma dificuldade em reconhecer os valores republicanos, o que chamamos de coisa pública. Por exemplo: as pessoas têm as casas muito limpas, mas as ruas, públicas, acostumaram-se a sujar. Essa ideia de coisa pública ainda precisa ser compreendida. Aquilo não é meu, é de todos. As práticas republicanas precisam ser valorizadas socialmente, e deve vir de cima. Os governantes devem servir como exemplo.

A democracia é a única via para o desenvolvimento, portanto?
Num regime democrático é que se pode construir uma sociedade melhor. Tudo isso é aprendizado. A democracia não é o pote de ouro no final do arco-íris. O arco-íris não tem final e não há pote de ouro. Esse pote de ouro deve ser construído pela sociedade, com a prática democrática e republicana. É como o (Winston) Churchill fala: “A democracia é o pior dos regimes, exceto todos os outros”. Regimes de força, sejam de direita ou de esquerda, levam às práticas autoritárias, que são reproduzidas na própria sociedade e, ao final, perde-se essa sociedade. Não basta dizer que queremos saúde e educação. Queremos saúde, educação e regime democrático.

Crescentemente reivindica-se por outros lados de uma mesma narrativa. Há diferentes ângulos na história?
Um historiador, evidentemente, tem suas preferências teóricas e nunca é neutro, mas tem um compromisso com a verdade. E a verdade está nos documentos, nas evidências. Que os processos políticos tenham várias versões, é evidente que têm, mas, por exemplo, no caso do nazismo vou tomar a versão dos nazistas como tão legítima quanto a dos judeus? Não é possível! Não há como dizer que os nazistas tiveram seus motivos para fazer o que fizeram. O relativismo não tem compromisso com a verdade. O nazismo foi um regime abominável e repugnante de extrema-direita, que elegeu o ódio racial como política para exterminar milhões de pessoas, não apenas os judeus, mas Testemunhas de Jeová, cardiopatas e muitos outros. Dizer que a escravidão tem dois lados como? É impossível! O escravizador explorava o escravizado à base de chicote. Como dizer que ele teve razões para isso? É evidente que, como historiador, é possível querer saber o que dizia o escravizador, mas não há como colocá-lo em pé de igualdade com o escravizado.

Sendo assim, como foi organizar um livro que retrata exatamente um momento recente de um país dividido politicamente?
Na Nova República essa divisão é política e foi trabalhada de maneira muito democrática. Havia de um lado um partido conservador e privatista, o PSDB, e de outro, um partido de centro-esquerda estatista, o PT, além de um partido pendular, que ora apoiava um ou outro, o PMDB. Todos esses partidos apostaram no jogo democrático. A palavra correta, então, talvez não seja divisão política, mas pólos políticos. Ora a sociedade brasileira viu no PSDB e em seu projeto privatista uma alternativa para o desenvolvimento econômico, ora viu no PT e em seu projeto estatista uma alternativa. Um respeitava a derrota para o outro, o que faz parte do jogo democrático. O PT, que era oposição, tornou-se situação. E o PSDB, que era situação, tornou-se oposição. Essa polarização, que faz parte da sociedade – ela não pensa igual, sempre há grupos, correntes de pensamentos -, sempre foi resolvida de maneira democrática. O problema começa na reeleição da Dilma, quando o PSDB não aceita o resultado das eleições, e é iniciado um processo para derrubar a presidente.

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Por essa razão decidiram concluir o recorte da análise do livro em 2016?
O nó górdio (metáfora da lenda do rei da Frígia e Alexandre, o Grande para problema insolúvel) da Nova República foi quando não se aceitou a derrota eleitoral democraticamente e criou-se um ambiente para retirar a Dilma Roussef da presidência. O PSDB e o PMDB romperam com o pacto democrático. O resultado foi o que vimos agora. Os dois partidos pagaram caro, com o PSDB tornando-se quase um partido pequeno, e o PMDB reduzindo sensivelmente sua bancada. Isso abriu espaço para grupos mais à direita, como o de Bolsonaro. Essa foi a crise. O que temos hoje é o PT, com todas as suas dificuldades e problemas, e o crescimento de uma direita, que não é o PSDB.

E qual momento se inaugura a partir de 2016? Há um nome para isso?
Toda coletânea deve ser plural, não pode ser a partir de um único ponto de vista, deve ter uma diversidade interpretativa. Chamamos de crise política de 2016. Alguns interpretam como impeachment, outros como golpe. No livro temos autores que defendem esse momento como um golpe, outros veem que foi um processo dentro de regras constitucionais. O livro respeita essa pluralidade. Como organizador, considero que o que houve em 2016 foi um golpe do parlamento contra a presidente, que pôs fim ao pacto democrático da Constituição de 1988, encerrando, portanto, a Nova República. Apenas finaliza. O que vem ainda não tem nome. Começamos um novo ciclo na política brasileira. Não sabemos o que vem pela frente. Espero que os poderes da República tenham o equilíbrio suficiente para solidificarmos o processo democrático.

 

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