Como era transgredir na ditadura? Bayard Tonelli conta
“O delírio era bem maior”: Integrante do lendário grupo Dzi Croquettes, transgressor ao dar visibilidade para as questões LGBT+ em plena ditadura, Bayard Tonelli revisa sua trajetória, sua luta e seus prazeres em visita a Juiz de Fora
Em contraste com a roupa toda negra, da jaqueta às meias, um coração com as cores do arco-íris parece maior do que realmente é. Sempre haverá cores em Bayard Tonelli. E sempre haverá luta. Criança, diz, já dava bandeira. Então, continha-se. Adorava poesias, mas evitava ler em público. Sensível, aos 12, já frequentava prostíbulos e dançava. “Andava com garotões de 16, 18 anos, que não entravam sozinho, mas entravam comigo. Nessa época, me apelidaram de Bibelô de China, porque eu ficava dançando com as prostitutas, e os coronéis ficavam todos de olho. Depois comecei a sacar que eles deviam estar de olho em mim, mas por meu pai ser uma pessoa pública, eles não se metiam comigo”, recorda-se o gaúcho de Porto Alegre, cidade que deixou para trás quando decidiu ganhar o mundo.
Integrante do Dzi Croquettes, Bayard e seus parceiros de grupo, como o mítico coreógrafo Lennie Dale, abriram as portas pelas quais passam gerações e gerações da cena LGBT+ do país e do mundo. Misturando teatro, música, dança, musical, cabaré e muitas outras linguagens, o grupo voltou aos holofotes para a travestilidade justamente quando a ordem era a monocromia. “Foi um período superimportante para mim e faz parte da minha base, da minha formação”, observa o artista, também uma mistura, entre bailarino, ator, coreógrafo, diretor, produtor e muitos outros tons.
Exageradamente maquiados, com figurinos ousados deixando à mostra os corpos masculinos, os Dzi Croquettes chegaram a Paris e só não desembarcaram em Hollywood por uma desmedida ansiedade. Não aguentariam estudar para aprender a língua. Tudo era urgente. E tudo era excesso, lembra-se Bayard. Até mesmo no dia em que dividiu uma mesa de jantar com Sophia Loren e Mick Jagger. “A comida não chegava, e eu estava morrendo de fome”, conta ele, que conheceu o escritor e cineasta Alejandro Jodorowsky e, em cena, encantou Liza Minneli. Há alguns anos, inclusive, Bayard entrevistou a cantora para um filme, mas o material não foi usado, e ele sonha, agora, editar o conteúdo.
Em passagem por Juiz de Fora, para ministrar uma oficina sobre corpo e texto na Semana Rainbow da UFJF, o artista conversou com a Tribuna, no hall do hotel onde esteve hospedado. Ao longo de cerca de uma hora, Bayard Tonelli recordou sobre o fim do grupo – “Eu cansei de me vestir de mulher naquela época”, diz – sobre o histórico de luta. Adolescente, ele aderiu à campanha da legalidade que mobilizou a sociedade civil e os militares por 14 dias, defendendo a manutenção da ordem jurídica após a renúncia do então presidente Jânio Quadros e cobrando a posse de João Goulart.
“A gente conseguiu segurar o golpe”, orgulha-se ele, que três anos depois viu os militares assumirem o poder. “Foi uma das coisas que me levaram a ir para o Dzi Croquettes, desbundar e sair viajando. Fiquei desesperado, porque antes eu achava que era revolucionário, que tivesse conseguido segurar o golpe. Mas em 1964 a coisa mudou, até meu pai mudou”, lembra o filho de um respeitado militar. “Sempre sentiu um certo respeito por mim. Fui criado dentro de quartel, então, sabia como dar um grito para juntar os homens. Tenho essa coisa de agregar, tanto no teatro quanto no Santo Daime. É o meu lado militar”, ri o homem, preso por duas vezes, mas nunca por muito tempo, faz questão de frisar.
Aos 72 anos, magro, alto e cheio de gestos, Bayard preserva em si a austeridade expressa nas roupas pretas. E também a energia, expressa no broche de coração colorido pela luta LGBT+. Testemunha dos tempos de desbunde geral e também resistência usual, Bayard é e a expressão da nobreza, seja ela da cena LGBT+, seja ela da própria tradicional família. “Meu nome é francês. Tive um tio com esse nome. Ele era da parte nobre da família. Não era meu tio de sangue, mas minha tia se casou com ele. Era de uma família hiperimportante no Rio Grande do Sul, com governadores, presidentes da República, altos políticos. Como eu era do lado classe média, todos insistiram, e minha mãe botou Bayard, numa tentativa de me dar uma certa nobreza.”
Revolução e delírio
“A coisa que mais me marcou foi a busca de tentar descobrir quem eu era, de querer saber o que eu poderia realizar. A coisa de viver em comunidade, num trabalho transformador, fez a gente acreditar que iria mudar o mundo. O Dzi Croquettes nos deu a chance de conhecermos um grupo de artistas especiais, incríveis, talentosíssimos, com uma proposta diferente, num momento complicado da ditadura militar, de muita repressão. Lutávamos contra a caretice, e isso nos dava muita força. E a gente via o resultado, a mudança nas pessoas, no público e os problemas que isso causava. Nossa postura e nossa vivência incomodavam os militares e as mulheres dos militares. O delírio era bem maior, mas a gente conquistou bastante coisa. A gente deu uma nova visão para o teatro musical brasileiro, influenciamos a moda tanto no Brasil quanto na Europa e outros espetáculos mesmo fora do país. As portas se abriam muito para a gente.”
Desbunde e abuso
“A gente era jovem e, relativamente, bonito. Despertávamos paixões, em homens e mulheres. As mulheres eram até mais vorazes do que os homens. Para mim, a parte sexual não era a coisa mais importante, mas eu me identificar, sim. Transa não me faltava, mas eu queria amar e ser amado. Eu queria carinho. Nosso meio acabava sendo muito promíscuo. Se você tinha um namorado, dois ou três dias depois ele estava na roda, e estava todo mundo transando com todo mundo. Era muita loucura. As pessoas se aproximavam para trabalhar com a gente, os produtores, e acabavam pirando, desbundando. Todo mundo perto da gente queria se transformar. Eu era bonitinho, chegava nos lugares, e os caras mais velhos ficavam fazendo gracinha para mim. As namoradas, também. Daí a pouquinho, os caras enchiam a cara, e eu ficava com a namorada. Quando via, o cara queria me encher de porrada, mas, no fundo, também estava afim de mim e não tinha coragem de assumir. No Dzi Croquettes, me liberei sexualmente, aos 25 anos. Comecei cedo, porque minha vida sexual comecei aos 2 anos e meio, quando aprendi que sexo era uma brincadeira gostosa. Aos 7, fui ver que podia ter estupro, dava problemas, e eu tinha que me defender. Tentaram abusar de mim, com violência. Tive que fugir, e a partir desse dia comecei a me defender.”
Liberdade e noite
“A dança era onde eu sentia mais prazer, onde eu ficava a vontade, era o momento em que eu ficava feliz. Eu não dançava profissionalmente, dançava na vida, socialmente. Comecei a dançar profissionalmente no Dzi Croquettes, já com 25 anos. Comecei tarde. Eu dançava na noite, nas festas. Eu organizava bailes, concursos de beleza, festivais de música. Comecei a trabalhar muito novo em grandes festas, eventos. Fui estudar arquitetura, larguei, fui para São Paulo, virei modelo fotográfico, comecei a fazer cinema e teatro. Um ano ou dois depois estava no Dzi Croquettes. A dança, para mim, sempre foi uma libertação. Nunca fui um grande bailarino, mas sempre tive muita gana e força. As pessoas ficavam impressionadas me vendo dançar, vendo a energia que eu tinha. Eu não tinha técnica, nem nada. Era onde me sentia liberto, podia expandir. Mas eu me cuidava para não beber demais, porque de vez em quando dava um rebu e quando eu via dava uma pancadaria.”
Música e couro
“O Wagner Ribeiro, que era o criador do Dzi Croquettes, do humor e do texto, era artesão. Durante o Dzi, quando não estávamos trabalhando, eu fazia artesanato com ele. Quando o grupo parou, ele voltou e me chamou. Depois de nove anos de teatro, eu me juntei com o Wagner e um francês e fizemos a Embaixada de Marte, uma firma que trabalhava fazendo roupas artesanais de couro. No primeiro Rock in Rio, vestimos o Armandinho, o Moraes Moreira e o Erasmo Carlos. O Ministério do Exterior expunha nossas roupas em feiras do mundo inteiro. De um pequeno grupo, cheguei a ter 60 funcionários de carteira registrada, exportando para Paris, Londres, Nova York e Amsterdã. Vendia para todos os estados do Brasil. No primeiro show do Ney Matogrosso com bunda de fora, as roupas eram nossas. Liza Minelli teve coisas da gente. Vestimos Elis Regina, Simone, Gal. Fizemos isso por sete anos, veio o Plano Cruzado, o Brasil e o exterior pararam de comprar, e eu precisei despedir os funcionários.”
Idade e prazer
“Quando cheguei aos 40, fiquei preocupado. Quando eu cheguei aos 50, também fiquei preocupado. Depois que passei dos 60, querido, acho que já não tenho com o que me preocupar. A vida sexual, por exemplo, de vez em quando passa um tempo em brancas nuvens. Mas, também, quando volta é uma loucura, voltam os ex-amantes, homens com quem tive caso. Estou numa faixa que não pego ninguém, sou pego. Se estou num lugar e começo a dançar animado, não importa a roupa, como eu esteja, sempre pinta alguma coisa.”
Dores e poesia
“Eu não danço, celebro. Na minha idade, para dançar, é mais difícil. As pessoas me perguntam: porque você não faz teatro musical? Porque para isso eu teria que dançar diversas vezes por semana e teria que ter preparo físico. Danço em cinema, vou lá, arrebento, e depois posso passar dois ou três dias de cama. Para dançar toda noite em teatro, tem que ter preparador físico, alimentação e tem que me pagar bem. Já escrever, escrevo por períodos. De vez em quando, vejo uma coisa, tiro uma frase. Sempre tive vontade de escrever, mas sempre tive vergonha do que eu escrevia. Eu escrevia e rasgava. Depois que acabou o segundo Dzi Croquettes, em 1988, comecei a guardar algumas coisas. Perto dos anos 2000, me chamaram para fazer um espetáculo, ‘Uma temporada no inferno: Cabaret Rimbaud’, sobre Verlaine e Rimbaud. Eu tinha descoberto as poesias eróticas de Verlaine e disse que estavam faltando. Foi quando comecei a recitar. Depois comecei a falar Fernando Pessoa e Walt Whitman. Um dia, um bofe, numa boate, me disse que eu só falava poesia gay e não falava para a mulher. Comecei a falar Vinicius de Moraes. Na primeira vez que fiz, umas mulheres de Nova York, quando acabei, levantaram e começaram a gritar de prazer. Eu sabia decorar e fazer, mas ler poesia, para mim, foi mais difícil.”
Maquiagem e barba
“Para mim, hoje em dia, é prazeroso. Adoro me vestir de mulher, mas hoje faço isso sem botar maquiagem, com essa cara, com essa barba. E agrado. Porque fazer as máscaras para ficar linda dá o maior trabalho na minha idade. Mas quando faço, fico uma velhinha bonita, engano. Quando me pagam bem, vou, faço as máscaras, vou na esteticista e, quando chega a hora, estou aquela múmia linda. Adoro chegar aos lugares e ver o povo gritando meu nome.”
Múltiplo e singular
“Levei anos para ser aceito, porque as pessoas não sabiam o que é o Bayard. É bailarino? É ator? Antes de fazer essa volta, de 2012 a 2016, com o Dzi Croquettes pelo Brasil, eu fazia série em papel masculino. Quando voltei ao Dzi Croquettes, pararam de me chamar para papéis masculinos. Depois de 2016, já fiz um general, um pai homofóbico, e, recentemente, um chefe militar de um planeta de vampiros que vem castigar os vampiros terrestres que sugam o sangue da humanidade e deixam o mundo na miséria e na dor. Foi meu primeiro filme falado em inglês. Hoje o Bayard é tudo, posso ser o que quiser.”
Fotos: Fernando Priamo