Interrompido após invasão de racistas, ‘RedeMoinho’ retoma debates

Projeto da Biblioteca Municipal Murilo Mendes volta a acontecer em edições virtuais, por meio de aplicativo


Por Júlio Black

18/06/2020 às 07h00- Atualizada 18/06/2020 às 09h47

RedeMoinho foi realizado na última semana pelo aplicativo Google Meet (Foto: Reprodução)

O Brasil é uma terra marcada pelo racismo há mais de 500 anos, e particularmente contra os negros há quase cinco séculos, desde quando o primeiro navio com escravos negros aportou por aqui vindo da África. E hoje, em pleno 2020, mesmo com a abolição do trabalho escravo, todas as ações de compensação e inclusão, ainda estamos longe de acabar com as desigualdades acentuadas por mais de 300 anos.

E o mesmo acontece quando a questão é o ódio contra quem é diferente apenas na cor da pele. O racismo, infelizmente, ainda é uma realidade nestes tristes tópicos. No último dia 6, por exemplo, a mais recente edição virtual do projeto “RedeMoinho – Diálogos que transformam” precisou ser interrompida por conta de uma ataque virtual promovido por racistas, que, entre outras atitudes deploráveis, começaram a ofender os participantes, publicar imagens pornográficas, de suásticas, colocar música alta.
O debate, que já acontecia há quase uma hora e envolvia cerca de 40 pessoas, teve a sala virtual fechada por causa de cerca de duas dezenas de racistas. Os organizadores até tentaram voltar com as discussões a partir do tema proposto (“Vidas negras: importam?”), mas não havia mais clima.

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Uma semana depois, o evento voltou a ser organizado, desta vez com medidas para prevenir a intromissão de propagadores de ódio. Os interessados precisaram se cadastrar para receber o link por email e a plataforma de reunião foi mudada. No total, foram 72 inscrições e 50 pessoas (limite do aplicativo) participando; o encontro transcorreu sem problemas e por quase três horas, com integrantes do movimento negro da cidade, região e até de outros estados. O mais importante? Questões foram debatidas, e foi possível dar novos passos para articulações e conscientização. Quem não participou do encontro virtual poderá assistir ao debate a partir desta quinta-feira (18), quando ele será disponibilizado no YouTube.

Ventos que movem

“O problema que tivemos na primeira tentativa deu um gás para melhorarmos na segunda, que foi perfeita; e não só pela plataforma mais fácil e acessível, mas também pelas pessoas que se dispuseram a participar, estavam mais preparadas e sabendo o que era o RedeMoinho. Acho que tivemos ótimos debates”, anima-se uma das responsáveis pelo projeto, Thaís Pifano. “Foi muito bom, porque tivemos pessoas negras, brancas, pobres, ricas, militantes, pessoas com deficiência auditiva, graças ao recurso de libras. Todos os RedeMoinhos são ventos que nos tiram do lugar, mas esse, em especial, nos tirou ainda mais.”

Para ela, um dos motivos para o sucesso da iniciativa estava no próprio tema proposto, que se manteve para o último dia 13. “A proposta era mais provocativa. Perguntamos se vidas negras importam, até onde as pessoas estavam dispostas a ir nessa luta contra o racismo; como elas se sentem, principalmente as pessoas que são alvo de todas essas violências.”

“Uma das coisas que vi muito pela internet – e que trouxemos para o debate – é dizerem que só agora, depois dos protestos nos Estados Unidos, que os movimentos negros começaram a se mobilizar por aqui, o que não é verdade. Muitas vezes as pessoas desqualificam as lutas de séculos. Falamos de projetos educacionais, sobre como tratar o racismo na sala de aula, em especial as crianças negras, a valorização da cultura afro e negra.”

Outros temas em debate

Thaís destaca entre as questões que se apresentaram aquela ligada às empregadas domésticas, apresentada por Tatiane de Menezes Bezerra. Formada em Serviço Social pela UFRJ, ela atualmente desenvolve um projeto de mestrado na UFJF que tem como tema a análise das percepções e representações do trabalho doméstico no imaginário colonial que persiste no Brasil e sua tardia legislação.

“Esta pesquisa tem como objetivo investigar o trabalho doméstico nos dias atuais, que é em sua maioria exercido por mulheres negras”, explica Tatiane. “Mesmo em meio à pandemia, essa categoria profissional vem tendo de conviver nos espaços de seus trabalhos com o racismo que persiste a partir da preservação do imaginário colonial”, continua a pesquisadora, acrescentando a inacreditável discussão recente sobre a natureza do trabalho doméstico ser ou não serviço essencial.

“A exemplo dessa relação de colonialidade, vimos que na cidade do Rio de Janeiro a primeira vítima da Covid-19 foi a doméstica Cleonice Gonçalves, que trabalhava há 20 anos numa ‘casa de família’ da Zona Sul Carioca, e, mesmo com jargão ‘faz parte da família’, Cleonice não foi avisada pela patroa que poderia ser infectada, pois ela havia contraído a doença após uma viagem à Itália. Outro caso emblemático foi o acontecido com o menino Miguel Otavio Santana da Silva, de cinco anos, em Recife. Filho da Mirtes Renata Souza, ele teve um final trágico enquanto sua mãe trabalhava, devido à negligência da patroa. Estes são apenas alguns relatos do quanto essas mulheres são marcadas por relações ‘coloniais’ e racistas, em pleno século XXI”, critica.

Outra mediadora do debate, Giane Elisa Sales de Almeida reforça a opinião dos resultados positivos do debate, tanto pelos temas quanto pela mobilização. “Acho que, por conta tanto da temática quanto da postura da Funalfa, que repudiou o que tinha acontecido, a participação foi bem significativa. Fizemos um paralelo com as movimentações que acontecem no Brasil há séculos, tivemos lideranças do movimento negro de outros estados. Foi um momento muito acolhedor, a equipe da Funalfa estava bem atenta à questão da segurança, e isso nos deu tranquilidade para discutir um tema tão denso.”

Para ela, esses espaços de diálogo sobre a questão racial no Brasil precisam ser ainda mais constantes e representativos, “para que as pessoas negras possam protagonizar, e que as pessoas brancas assumam suas responsabilidades, se impliquem na questão do enfretamento ao racismo. Não só dizendo que vidas negras importam, mas mostrando como as vidas negras importam no seu cotidiano.”

Feridos, mas não vencidos

Se casos de racismo e ódio explícitos como os ocorridos no último dia 6 não fazem o movimento negro fugir à luta, eles não deixam de machucar e servir de exemplo para aqueles que não são pretos ou negros entenderem a realidade vivida pelos descendentes daqueles oriundos da África.

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“Nós nos sentimos invadidos, e eu me senti muito mal porque é isso que as pessoas negras passam todos os dias. Em algum lugar do Brasil tem alguém passando por esse tipo de violência. Falei várias vezes e repito: interromperam a nossa conversa, mas não encerraram o nosso debate”, reitera Thaís Pifano. “Temos percebido que, quando você assume a luta pela vida, você se assume como inimigo de um sistema que está no poder. E quando você assume a vida negra, tem que lutar contra gente maligna, que só tem coragem de fazer isso por trás da tela do computador. Se fosse lá na biblioteca (Municipal Murilo Mendes) não teriam coragem”, acrescenta, lembrando que a próxima reunião do “RedeMoinho”, iniciativa iniciada em 2019, deve acontecer no próximo dia 27, ainda de forma virtual, e deve estar ligada ao mês da visibilidade LGBTQ+.

Giane Elisa é outra a afirmar que o ocorrido no último sábado não é novidade. “Sou uma mulher negra e sei exatamente o que é ser atacada o tempo inteiro. Mas naquele momento as pessoas não negras puderam sentir o devir negro (momento que as pessoas experimentam o que é ser negro), pois todas foram atacadas, todos puderam experimentar o que é ser agredido à toa, xingado sem motivo”, pontua. “O fator surpresa desmobiliza a gente, mas a questão do ataque não é novidade para nós; é uma oportunidade para refletirmos como os padrões colonialistas mudaram muito pouco. Os padrões de tratamento dos corpos negros permanecem praticamente os mesmos. E nesses momentos em que as reuniões precisam ser virtuais isso possibilita o anonimato, e essas pessoas representam o pensamento de grande parte da sociedade que diz que não é racista, mas tem pensamentos colonialistas.”

Boletim de ocorrência

“A Giane me falou logo após o fato: ‘talvez agora você tenha sentido o que o negro sente quando tem sua liberdade cerceada, de falar o que pensa, entrar em algum lugar’, e as palavras dela foram muito significativas para mim”, relembra o diretor-geral da funalfa, Zezinho Mancini. “Quando tudo aconteceu, eu fiquei muito assustado, pensando o que fazer, e me fez pensar que deveria me colocar no lugar deles mesmo sendo um homem branco. Fizemos um boletim de ocorrência na Polícia Federal sobre o ocorrido.”

Ainda sobre a questão, ele defende a importância de se falar sobre isso na mídia. “É preciso levar informação para a população. Ainda temos muito esse discurso de que não existe racismo no Brasil, e esse tipo de fato mostra que ele ainda está presente. É um debate que é urgente, que não se pode deixar passar mais. Temos feito ações pra ajudar nessa luta antirracista que teve os holofotes reforçados com os protestos nos Estados Unidos pelo assassinato do George Floyd, e, por aqui, a morte do menino Miguel em Recife.”

“Tenho usado uma metáfora do Banksy (artista de rua britânico), que falou sobre a responsabilidade da correção do racismo ser das pessoas brancas: ‘É como se eu morasse no andar superior e houvesse uma inundação que afeta os andares de baixo, e se eu não assumir a responsabilidade, cuidar do problema, elas jamais poderão sair disso’, e eu acredito piamente nesse pensamento e acho que isso se reflete na administração da Funalfa.”

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