Tom Hanks faz sua primeira incursão pelo western em “Relatos do mundo”

Longa de Paul Greengrass, disponível na Netflix, tem o ator no papel de veterano da Guerra Civil americana que tenta ajudar menina sequestrada por índios a encontrar seus parentes


Por Júlio Black

18/02/2021 às 07h00

Jefferson Kidd (Tom Hanks) assume a obrigação moral de levar criança raptada por índios (Helena Zengel) para seus parentes em “Relatos do mundo” (Foto: Divulgação)

Tom Hanks já interpretou uma criança em corpo de adulto, foi para o espaço, ficou sozinho em uma ilha, enfrentou os Illuminati e contou histórias em um ponto de ônibus. O veterano ator, porém, somente agora se aventura no western, um dos gêneros mais caros ao cinema norte-americano, como o protagonista de “Relatos do mundo”, que estreou no catálogo da Netflix no último dia 10 depois de passar pelas salas de cinema dos Estados Unidos.

Com direção de Paul Greengrass, que já havia trabalhado com Hanks em “Capitão Phillips”, o longa é adaptação do livro de Paulette Jiles, lançado em 2016. A história se passa em 1870, no Texas, cinco anos após a Guerra Civil norte-americana (1861-1865), que terminou com a vitória da União sobre os Estados Confederados, localizados ao Sul do país. Tom Hanks interpreta o Capitão Jefferson Kyle Kidd, que lutou pelos Confederados e, ao contrário de tantos ex-companheiros, cansou-se dos horrores do cotidiano de matanças. Enquanto muitos formaram milícias ou bandos criminosos em geral, ele preferiu se tornar um leitor de notícias para os moradores de pequenas cidades e vilarejos do Texas, levando consigo os jornais mais recentes da região, do estado e do país.

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Durante uma de suas viagens entre cidades, ele se depara com a jovem Johanna (Helena Zengel). Jefferson descobre que ela é filha de colonos alemães e foi sequestrada ainda pequena pela tribo que massacrou sua família e a comunidade onde vivia. A garota havia sido resgatada recentemente e estava sendo levada para encontrar os parentes ainda vivos, mas o responsável pelo seu resgate foi assassinado.

O veterano de guerra decide entregá-la para as autoridades competentes, mas, ao ver que não será tão fácil deixar a menina com algum responsável, assume a obrigação moral de atravessar mais de 600 quilômetros pelo Texas até que ela possa encontrar o que restou de sua família, que sequer a conhece. Como se trata dos Estados Unidos da segunda metade do século XIX, com o vale-tudo que marcava o país quanto mais a pessoa seguia para o Oeste, a viagem é promessa de muitos perigos para a dupla.

Faroeste e política

“Relatos do mundo” segue em diversos aspectos a cartilha do faroeste hollywoodiano, como a representação da figura cansada de tantas matanças que, disposta a seguir uma vida que deixa o passado para trás, embarca em uma última jornada a fim de alcançar a tão esperada redenção – que costuma vir na figura de uma mulher ou criança. O longa, porém, não se resume à jornada de expiação do herói, e é possível traçar alguns paralelos com os dias atuais.

Por exemplo, temos os Estados Unidos ainda no período chamado de Era da Reconstrução (1865-1877), em que os Estados Confederados, derrotados na Guerra Civil, foram gradativamente reintegrados à União. Mas havia muito ressentimento por parte dos sulistas – não só pela derrota, mas também pela presença ostensiva dos soldados do lado vencedor em seus territórios.

Também havia ainda alguma resistência às emendas à Constituição aprovadas pelo então presidente Ulysses S. Grant, que determinavam a abolição da escravidão, o direito ao voto dos negros e o pagamento de dívidas da guerra. Todo esse contexto provocou profundo ressentimento entre os sulistas, a exemplo do que se vê nos Estados Unidos desde a eleição e posterior derrota de Donald Trump.

Apesar de não ser citada no filme, a história pode ser vista como uma crítica indireta ao infame Destino Manifesto, doutrina que defendia que os Estados Unidos foram escolhidos por Deus para “comandar o mundo” e expandir sua visão por todo o globo – além do território, claro, nem que para isso fosse preciso massacrar e expulsar de seu território as tribos indígenas, que aparecem no filme quase que como uma miragem distante.

Em busca do diálogo

Outra metáfora sobre os dias atuais vem da própria profissão escolhida pelo Capitão Jefferson Kyle Kidd para ganhar seu pão. Ao ir de cidade em cidade lendo as notícias, ele se torna uma ferramenta “analógica” contra a disseminação de fake news, ainda mais numa época em que o analfabetismo e a dificuldade de acesso à informação facilitavam a boataria, que fica ainda mais explícito em uma passagem importante da produção.

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Outro destaque do filme é a relação entre Jefferson e Johanna. Acostumado a se valer das palavras para cativar as plateias e levar a verdade a lugares tão distantes, o veterano de guerra de repente se vê às voltas com uma menina que sabe falar apenas o idioma dos kiowas, e mal arranha algumas palavras em alemão que ainda não esqueceu. Tom Hanks brilha ao interpretar um homem marcado pelos erros do passado, por tudo que deixou para trás, e que precisa encontrar uma forma de se comunicar com a jovem que não sabe nada de inglês. E sua atuação cresce ainda mais graças ao ótimo trabalho da estreante Helena Zengel, que muitas vezes tem apenas o olhar como forma de se comunicar com aquele estranho que simplesmente a leva de um lugar para outro, cheio de gente bruta, estranha e perigosa.

“Relatos do mundo” tem sido criticado pelo seu roteiro linear, sem muitas ameaças ou um antagonista de peso, como é comum nos faroestes. Os protagonistas basicamente vão do ponto A para o ponto B, e isso tira um pouco do peso da trama. Porém, o longa é um faroeste intimista, que não pede grandes cenas de ação, mesmo que tenhamos ótimas sequências como o confronto de Kidd com um trio de bandidos.

O filme produzido pelo Universal Studios vale o pagamento da mensalidade do streaming graças à atuação da dupla de protagonistas, a competente direção de Paul Greengrass, o trabalho de reconstrução do Texas do século XIX – tanto nos cenários quanto nos figurinos – e a fotografia de Dariusz Wolski, fatores que, juntos, fazem do longa um bom exemplar de western feito em nosso jovem milênio.

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